quinta-feira, fevereiro 26, 2009

De braços abertos, a segurar o céu

O céu estava todo azul e o Cristo alto de cimento estava, como sempre, a segurá-lo, de braços abertos. Era ainda a altura do dia em que as subidas fazem transpirar.

Ela caminhava com a ajuda de uma muleta, e ele estava parado de costas para ela. Ele continua a ser o Cristo alto de cimento. Ela, ia dizer-me depois, era Fernanda da Conceição Alves.

Trazia vestido um casaco preto ruço e grosso, pelo tornozelo, calças de flanela e um cachecol cinzento, enrolado ao pescoço. Fernanda tem a cara amarrotada por rugas grosseiras, profundas, mas os seus olhos são da cor do céu que o Cristo alto de cimento segura com os braços.

- “Eu ando aqui perdida, não sei onde ando”, suspira. “Ninguém me acode!”

Saiu de manhã de casa para ir namorar e perdeu-se.

- “O meu marido morreu há seis meses. Meu rico marido! Ia ao cemitério vê-lo, porque tenho saudades. Mas já não tenho cabeça. Perdi o tino. Moro no Bairro no Pica-pau. Tenho que apanhar o autocarro”, apressada, apressada.

Mas não sabia onde ia apanhar o autocarro nem que autocarro devia apanhar. Fernanda ouve mal; não percebe nenhuma palavra que lhe chegue ao ouvido mais baixa do que um grito. A pressa que levava nas pernas não denunciava nem a cabeça baralhada, nem a perna que dizia ter manca.

- “Ai, o que eu era! O que eu era! Sabia muito bem dançar, ia para os bailes, para as festas. E era bastante jeitosa!”, lembrou, a sorrir. “Agora ando assim da cabeça, com o tino perdido".
Fernanda envelheceu tudo na cara e muito pouco no cabelo, quase todo preto, arrumado para trás com uma bandolete.

- “Não tenho ninguém; sou sozinha. Não há ninguém a quem possa ligar”, garantiu-me. “Mas não estou nada perdida, sei bem onde estou. Vá com Deus que eu fico com Deus. Eu tenho passe”, afirmou, inabalável.

E tem: dentro do quadrado da fotografia está, de lábios vermelhos, a Fernanda de corpo jeitoso; a dos bailes; a de antes da muleta, da viuvez e da perda de tino. À volta disso está um passe social com a senha deste mês.

Seguimos até uma paragem de autocarro.

- “Nasci em Campolide. Tenho quase 89 anos. Tenho penado muito nesta vida! Mas sempre como uma mulher de bem. É perguntar a qualquer pessoa, toda a gente diz informações de bem sobre mim. Trabalhei muito, e não foi a matar ninguém: trabalhei nas obras, a dias... Fiz muito toda vida!”

Espreitei as horas e o horário do autocarro e voltei a fazer-lhe as perguntas do início, para garantir que conseguia chegar sozinha a casa.

- “Eu tenho muito boa família, bem empregados. Até tenho um primo que trabalha na televisão! Mas não tenho ninguém. Sou sozinha. E estou aqui perdida. Perdi o tino e não tenho quem me acuda. Moro na Praça...”

Falei-lhe em chamar a polícia. Teve medo, não quis. Tentei um táxi, mas ali os carros são para turistas com dinheiro, não são para velhos perdidos. Parei um condutor e fi-lo companheiro de missão: Mário.

- “Fernanda! Arranjámos um carro!” Fernanda tinha prometido ficar sentada perto da paragem, até que a solução aparecesse. E ficou. E fomos. Parecia uma menina:

- “Eu pago! Eu pago! Siga! Siga!” E dava ordens aos gritos, gesticulava, dava saltinhos no banco de trás. Achou que estava num táxi e eu não a contrariei. Lembrava-se perfeitamente do caminho. Chegámos.

- “Vais ver a minha casinha. Limpinha. É só um bocadinho. Vens lá comigo, ver a minha casinha!”, dizia, excitadíssima, a fazer-me festas na cara e a sorrir-me, numa imensa boca deserta, e a tirar do bolso as chaves de casa.

A porta do prédio não tem fechadura nem maçaneta: tem um buraco a fazer de uma e um arame a fazer de outra. No caminho até ao 4º C pode perceber-se que ficou muita coisa por acabar. Fernanda abriu a porta e mostrou-me tudo, quarto por quarto. Fotografias, casa de banho. Tudo, enquanto dizia: “Tenho ou não tenho uma linda casa?”

Aguentou-me ali tanto quanto pode. Antes de me deixar vir embora beijou-me e abraçou-me com muita força.

- “É de todo o coração, filha, de todo o coração!”

E abraços e beijos e abraços e mais beijos. De todo o coração. Adeus.

Voltei de boleia com Mário, meu companheiro de missão. Ele deixou-me onde eu o parei, mesmo antes das suas fotografias à ponte. E o Cristo alto, de cimento, estava exactamente onde ficou: de costas para Almada, sem ver os de lá nem acudir os de cá, mas de braços abertos, a segurar o céu.

1 comentário:

Anónimo disse...

Retrato muito bonito.