segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Nasser, o taxista da família e do coração

Estamos a meio caminho entre Mascate e Seeb, na Grande Mesquita Sultão Qaboos, o homem que manda em Omã e que é “bom, tolerante e visionário”, dizem várias vozes pelos cafés.
O sol nasceu há pouco tempo mas já não é difícil transpirar. No jardim da Mesquita, o trabalho começou muito antes de chegarmos. Em direcção a nós vem um jardineiro indiano incontornável, orgulhosamente “encarregue de tudo o que se vê ali plantado”, e pronto para fotografar estrangeiros, mesmo aqueles que não querem ser fotografados. “É ali que costumam ficar para eu lhes tirar fotografias”, indica – ordena – com a mão, para logo depois fazer o gosto ao dedo.
Dois passos à frente, uma cara familiar.
- “Estão atrasados, menina.”
Nasser fala como anda: com muita calma. Sorri sempre. É um homem baixo, de pele morena e, hoje, barba de um dia. Tem, entre os olhos escuros, um nariz grande e redondo, que está também na cara do mais novo dos seus nove filhos, que fotografou com o telemóvel.
Acordámos uma viagem até Nizwa, a 80 quilómetros de Mascate, uma paragem no mercado e outra no único forte onde é possível entrar. O regresso, prometeu, seria a tempo do segundo autocarro da capital para o Dubai.
- “Ainda não entraram na sala principal?”
Descalçou as sandálias e seguiu-nos.
A Grande Mesquita de Omã “tem 40 mil metros quadrados e espaço para 20 000 fiéis. Foi construída com materiais sírios, egípcios, turcos e iranianos. O Sultão inaugurou-a em 2004”, explica Nasser.
A principal sala de oração é senhora de largos ornamentos: no chão tem 4 200 metros quadrados de carpete persa feita à mão – dentro da Mesquita, sem cortes – e que pesa 21 toneladas; no tecto, de cúpulas altas, há traços dos fortes que os portugueses contruíram em Omã, e luxo pendurado nos imensos candeeiros de cristal e ouro.
Seguimos viagem. Mascate embala o caminho para Nizwa: as montanhas tocam as núvens e enquadram a vista em tons de castanho e cinzento; as palmeiras aconchegam as casas árabes, bonitas e arranjadas.
Chegamos em meia hora.
O mercado da cidade começa antes da entrada: há artesãos sentados debaixo de chapéus de sol, com as plantas dos pés juntas, a apertar couro, e as mãos às voltas com corda e agulhas, para fazer sapatos. É fácil falar com as pessoas mas difícil fotografá-las, que-não-querem-que-não-que-não.

Depois disso também há poucas pessoas com menos de 60 anos. Há artesanato, peixe, carne, frutas e legumes, tecidos, roupas...

Nasser conduz-nos pela vida das ruas e pela de casa.

- “Tenho nove filhos. Somos 13; os meus pais vivem connosco. Em Omã não é difícil ter muitos filhos: o Governo paga integralmente a saúde e a educação, mesmo o ensino superior. Só precisamos de pagar a comida. Tenho uma pequena quinta e dois empregos: trabalho para o Estado e tenho este táxi”, conta.

Cumprimenta vários homens pelo caminho. Repete-se sempre o mesmo ritual: os dois, frente a frente, disparam perguntas em catadupa, num pingue-pongue de palavras que parece ensaiado e que é tanto mais longo quanto a estima que têm um pelo outro.

- “A sua mulher?”
[Fotografia de Vítor Martinho]

- “Bem, a sua?”
- “Bem, o seu filho?”
- “Está bem, o seu?”
(E mais, e mais..)
Almoçamos numa sala quadrada, forrada de carpetes persas, com almofadas ao canto, no chão e na parede, para as costas. Estamos descalços e de mangas arregaçadas. Chegam à mesa, que é a maior carpete no chão, forrada com um plástico fino, seis pratos de diferentes tamanhos, de onde comemos todos: arroz; salmão grelhado; salada de alface e tomate, temperada com limão; atum em molho de vinage e cebola.
- “Não usamos talheres. Comemos com a mão e todos de um prato grande, sempre com a mão direita. Para os muçulmanos, a esquerda é a mão suja; é com ela que nos lavamos. Toda a família come das travessas: imaginam o trabalho de lavar 13 pratos, mais travessas e panelas todos os dias?”, abana a cabeça aliviado, com a mão direita besuntada de arroz como estava, de resto, - e muito por culpa da minha habilidade, confesso - todo o plástico que cobria a carpete.
Saímos redondos de cheios do restaurante. São horas de voltar. A paisagem é a mesma mas no sentido inverso e mais bonita, por estarmos de partida. O terminal de autocarros é feio, como é feio dizer adeus. A cara de Nasser já tem saudades e a nossa também.
- “Queria poder não aceitar o vosso dinheiro. Passei um dia maravilhoso.”
Apertámos as mãos, abraçámo-nos e beijámo-nos. Voltámos com um nó na garganta.
A nossa história mantém-se em todos os capítulos de todas as nossas viagens. As histórias daqueles com quem nos cruzamos mudam sempre. E acrescentam-nos tanto que é impossível viver sem estar sempre com pressa de nos demorarmos em todas as pessoas do mundo que ainda temos por ver.

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