quarta-feira, novembro 18, 2009

A boina da vitória, sempre

A porta de metal encardido e vidro baço uivou quando a empurrei, a medo. Antes de o cheiro a bafio se me colar ao corpo, o pequeno sino por cima da porta anunciou-me.

Lá dentro era o avesso de lá de fora, um cemitério de móveis para venda. Lá fora, do direito do avesso, era um vale de estradas que ora são pó de terra ora piscinas de lama.

Estamos na Almada que não cabe nas fotografias para mostrar. Estamos numa loja ampla, abafada e bolorenta, que há 40 anos espera que alguém entre para comprar móveis.

Ao lado da mulher, Alves Carvalho, proprietário do espaço, sobrancelhas espessas e revoltas, camisa de flanela grossa aos quadrados, ostenta em cada palavra 60 anos de fibra.

“Aqui somos uns zeros à parte. Não somos nada, nada. É um salve-se-quem-puder”, cuspiu rancorosamente entre os espaçados dentes.

“Isto depois do 25 de Abril – coisa linda, linda – foi uma invasão de gatunagem e os bufos – aqueles da PIDE, a menina não se lembra, que não é do seu tempo – ficaram, só mudaram de lado”, continuou, sem perguntas, só uma pressa de metralhadora na boca enrugada.

Alves Carvalho acha que “o país está podre que fede” e que, “se não fosse a CEE, estávamos afundados em merda”.

“Isto começou tudo na Universidade de Coimbra, onde aprendiam a ser ladrões”, afiançou, para logo depois garantir que trabalhou “sempre no duro para ser honesto”: “Nunca quis estudar para malandro”, garantiu.

Enquanto falava, Alves Carvalho dava aos ombros um balanço de varina fadista. E nisto a cabeça seguia a dança, com uma boina de fazenda no topo.

“Nunca fui Salazarista e até estive preso porque conspirei, mas a forma que ganhou a revolução, o estado em que isto está, eles é só roubar, só roubar e a gente aqui, um cheiro a merda e a gente invisíveis”.


E perdeu-se por ali afora, com as palavras engalfinhadas pela urgência de chamar a pátria à razão.

Percebi, antes de me encaminhar para a saída, que a boina de Alves Carvalho não era tradição, não era à esquerda, não era à direita.

Aquela boina, a última a dançar quando ele falava, era a boina até à vitória da sua revolução, sempre.