sábado, dezembro 20, 2008

Epílogo, retrato ou os Caboverdianos são portugueses fermentados

É olhá-los de perto e percebe-se o desenho todo. O fio da história cravado neles, inexorável. Os cabo-verdianos são portugueses fermentados. São o molde exacto dos que vieram mais o terem ficado ao sol, à espera que crescesse tudo.

Bur’organização e monofuncionalismo

São dez da manhã. A única papelaria da Achada de Santo António, na Praia, está a abarrotar, embora o seu espaço seja consideravelmente amplo. Podia ser uma feira, não fosse não se ouvir barulho nenhum; não fosse não se sentir qualquer movimento. Podia ser uma multidão com o dia estragado, por estar suspensa por um lápis, uma cartolina ou umas folhas quadriculadas. Mas não é. É um molho de gente placidamente à espera, de pé.

- Precisava de cinco cartolinas de cores, a quem é que as peço?

E nenhuma resposta, tudo calado. E eu irrequieta, a olhar, a levantar o braço, a fazer sinal aos funcionários, a tentar perceber em qual das filas devo alinhar.

Passam-se dez minutos até poder ter a atenção da senhora do balcão central.

- É simples. Fica nesta fila para pedir, pede e eu dou-lhe o talão; segue para a fila da caixa, onde paga; e depois volta aqui para que eu lhe dê aquilo que pediu, com o talão carimbado, assinado e registado pelo meu colega, sim?

Baixei a cabeça e ocupei o último lugar na fila da primeira etapa. Fiz de conta que não queria perguntar por que estavam dois senhores dentro do balcão sentados a olhar. Mas devo ter sido pouco discreta.

- Aqueles meus colegas estão encarregues das devoluções, o trabalho deles não se mistura com o nosso!

A selva de alcatrão

A Praia é uma cidade vaidosa mas atravancada, barulheta, nublada. Há pedaços de estrada nos buracos. Há sete trabalhadores da câmara a olharem para dois a abrir ou a fechar um buraco em hora de ponta; há filas de trânsito a todas as horas e há uma condução expedita e familiar.

Os cintos de segurança diz que apertam o tórax e que não merece a pena. Os piscas diz que são aborrecidos, porque eles é sempre um tic-tac-tic-tac-tic-tac. Na estrada comunica-se com a buzina: do “olá” ao “adeus”, do “passe, minha menina, para que a veja de costas”, ao “anda, palhaço!”
As passadeiras são lindas e animam muito a estrada, que sendo apenas preta não teria graça nenhuma. Os semáforos gastam um balúrdio em luz, mais vale estarem desligados. Os taxistas são mais do que os buracos na estrada e ainda mais do que as lojas do chinês. Ultrapassar é como calha, incluindo pela direita. Parar é onde for, conduzir é sempre a aviar.

Um relógio lusitano

A noção do tempo aqui é a noção do tempo em Portugal, mais o fuso horário e mais o sol, e mais o problema com o trânsito, e mais as chatices com os autocarros e mais os malvados taxistas, e mais os vários filhos e menos pressa – muito menos pressa – e a certeza de que nada começa com menos de meia hora de atraso. A juntar a esta ainda outra: a certeza de que não se verá ninguém inquieto com isso.

Até o patriotismo português dos dias de jogos da selecção – mais os cachecóis, mais os bonés, mais as t-shirts oficiais, mais os apitos e as buzinas – ficou cá, mas muito mais inchado: tanto, que se tem vergonha de se dizer que não se tem; que se esconde uma necessidade para dar boa imagem do país.

Ficou ainda o engate luso, mas com sangue mais quente; a cerveja com mais calor; o Benfica, o Porto e o Sporting; a homofobia e aquilo que enche o peito dos portugueses de vez em quando e mantém os cabo-verdianos a sorrir, todos os dias, de coração: o “saudinha-é-que-é-preciso”, o “tudo-se-cria” e o “há-de-acontecer-se-Deus-quiser”.

Adeus, professora Joana

Decidi aproveitar o facto de não ir trabalhar para usar chinelos.
E foi assim descalça que fui dar a última aula de inglês.


- "Joana, os teus pés são brancos!"

- "Sim. Eu não sou toda branca?"

- "Pois, mas os pés também? É muito estranho..."






A minha turma.

terça-feira, dezembro 16, 2008

Arrumações praticamente implacáveis

No Plateau, downtown da Praia, os passeios das ruas eram percursos sinuosos entre magotes de vendedoras e os seus arraiais, estendidos por onde calhava, e clientes, transeuntes e curiosos.

«Um panorama desagradável para a emblemática parte histórica da capital do país», lê-se no Expresso das Ilhas de 19 de Novembro.

Havia, pelo chão e pelas bancas improvisadas, alguidares com cachos de bananas e torres de pêras, maçãs ou laranjas; tábuas encardidas com peixe e carne de várias qualidades, ao calor e às moscas; amendoins, pastilhas, bolos, bolachas – caseiras e embaladas – e cigarros – em maço ou avulso.

Havia aguadeiras com garrafões, garrafas e geleiras, na tarefa hercúlea de manter a água fresca, misturando pedaços de gelo partidos com as mãos nas garrafas já usadas, prontas para revenda.
Havia vendedoras de roupa, pedintes e homens de boa fé, encarregues de oferecer aos turistas um câmbio informal de qualquer moeda do mundo em escudos: “Câmbio! Bom negócio, bom negócio! Câmbio? Change? Quer casar? Okay, saúde e boa sorte.”

A Câmara Municipal da Praia resolveu fazer uma limpeza geral e varrer uns feios para debaixo do tapete.

«De acordo com Óscar Santos, vereador responsável pelo processo de transição das vendedeiras ambulantes, o objectivo primordial é fazer com que essas pessoas exerçam as suas actividades com mais dignidade. (...) Para isso, a CMP remodelou o mercado da Achadinha, Paiol e Vila Nova (...) e decidiu pela isenção de taxas durante seis meses e, depois, no pagamento da metade dos preços. »

A data limite para que os 2 000 feios que vendiam no Plateau parassem de estragar as vistas era 1 de Dezembro. Seriam, entretanto, «distribuídos por vários mercados, de acordo com a sua zona de residência.»

A Câmara fez um trabalho louvável: deixou tudo para o grande dia!

Maria de Lurdes tem pouco mais de 50 anos e está entre a multidão de mulheres indignadas que preenche cerca de quinhentos metros quadrados na extensão do mercado de Sucupira. Não percebo uma palavra. Vejo gestos bruscos, bocas abertas, aos gritos. Maria foi sempre vendedora ambulante. “Houve muita gente que não conseguiu um espaço. Eu não consegui e ninguém me deu nenhuma satisfação”, grita-me.

Ela é só um dos 1 200 problemas que a Câmara tem ainda por resolver. Este espaço tem lugar para 800 vendedoras, cada uma na secção destinada aos produtos que vende, e a ocupar escrupulosamente o seu pedaço de asfalto, delimitado a amarelo.

“Há mais mercados”, explica-me Maria de Lurdes, mas as pessoas estão habituadas a vender nos seus sítios. Têm os seus clientes. Não há direito!”

Para além disso, todas querem ficar nos lugares da frente, onde os clientes vão chegar primeiro. Ninguém percebe a lógica da arrumação.

A agitação é enorme. É um motim contra o pobre homem da Câmara a quem delegaram a tarefa de estar com um papelinho rabiscado a indicar os lugares às mulheres. É franzino e tem uma voz conforme. É uma presa nas mãos destas senhoras, habituadas à caça feroz da vida neste país. Vi-o duas vezes entre a multidão, sempre de fugida, a correr à frente de gritadeiras enraivecidas. Não sei se saiu vivo dali.

O Vereador justificou, posteriormente, os «pequenos desacatos» com as «atitudes menos próprias das vendedeiras. Muitas apresentaram identificações falsas e algumas exaltaram-se um pouco», afirmou.

Resumindo as coisas, a Câmara deu conta do recado e o Plateau, asseguram, “está agora limpo e ganhou uma nova vida! Já não há vendedoras, as ruas estão mais amplas e com melhor circulação.” Já não há nada disso porque agora é tudo proibido.

Vale à essência da Praia a herança portuguesa do deixa-lá-ver-o-que-isto-dá. É proibido, sim, senhor, mas no dia 2 cada um voltou ao seu lugar nos passeios do centro da cidade e, até ver, o Plateau continua exactamente na mesma.

quarta-feira, dezembro 10, 2008

As caras da Calheta

Boca Ribeira fica perto da Calheta, no Concelho de S. Miguel. É das zonas mais pobres da ilha de Santiago. Fica a cerca de duas horas da Praia, a caminho do Tarrafal.

A aldeia está cercada por montanhas imponentes, recortadas a verde e castanho.

As casas são abafadas e cheiram todas a falta de água. As paredes nunca chegaram a ser pintadas e têm décadas de mãos sujas de raspão.

Os olhares são curiosos e progressivamente mais. Uns chamam outros e percebe-se que somos a notícia do dia.

Aqui, como de resto um pouco por toda a ilha, a vida passa-se na rua. Os homens demoram-se nos cafés; as mulheres levam metade da vida à cabeça e os miúdos pela mão ou às costas, atados com um pano.

Cheira muitas vezes a refogado: umas tentam vender alguma comida, outras vendem frutas, bolachas, doces ou amendoins. Há ainda as que vendem roupa. E há as que vendem tudo isto.

É frequente ver-se meninas a fazer o lugar das mães, quer seja a tomar conta de irmãos mais novos, quer seja a vender, numa paciência venerável, muitas vezes ao ritmo de três ou quatro maçãs por dia.

Paramos numa rua onde o meu amigo tem um irmão. Fico à porta – não consigo voltar a entrar na casa – e assomo-me aos vizinhos, que gozam o dia a arrefecer. São quatro da tarde.

Um rancho de crianças. Têm vergonha de falar português e percebem mal o que digo. As mais velhas convidam-me, com gestos, a sentar-me, enxotando os dois meninos que lá estavam antes de mim. Observo-as, observam-me. Riem-se. Tenho vergonha de não saber falar crioulo e defendo-me da falta de palavras com fotografias.



O Iace tipo e o tipo do Iace

Valter é iacista. A bem dizer, é um camionista mal amanhado e crioulo. É dono e condutor de um Toyota Hiace, o famoso iáce, onde cabe Cabo Verde inteiro e mais umas tralhas. Tem 25 anos e transpira estilo.

O seu carro é verde escuro porque o dono é um sportinguista convicto. No retrovisor tem um penduricalho que fede a lavanda ou assim; um faz-de-conta-que-isto-alivia-o-cheiro-a-mamífero-transpirado.

- “Tarrafal? ‘Somada?”
E um braço forte, de fora do carro, a chamar passageiros. “Trabalho sozinho, prefiro assim. Eu arranjo as pessoas, compensa.”

Mais acima, no espelho, tem colado o nome da filha, escrito com letras douradas. Aline. “O da mulher é melhor não. Sabes como é, princesa, a vida dá voltas, e o autocolante é difícil de descolar, depois deixava-me marcas no espelho.”

Valter tem uma condução arrojada, domina a viatura num estilo seguro e jactante. Ajudam, claro, os pedais modificados, que têm um adaptador com borrachas, “para aumentar a aderência do pé à chapa”.

“Podia andar a duzentos à hora”, assegura, “mas a gasolina está cara.” Pavoneia-se nas estradas da Praia, enquanto procura clientes, e depois rasga sem piedade a paisagem verde, a caminho do interior. É sexy, irremediavelmente sexy.

- “’Somada! ‘Somada!” O braço é musculado. Coisa trabalhada, bem se vê.

Conduz só com uma mão e aperta a buzina como ninguém: “Criei vários códigos com people meu amigo. Invento maneiras de dizer cenas só a apitar.” É um poeta das buzinadelas. E “pode dar-me umas dicas um dia destes.”

Valter tem brio no seu iace, cuida dele. Lava-o três vezes por semana. “Ele é parte da sua personalidade”, assegura. No tablier há sempre uma coisa que fica entre a ideia que se tem de um cachecol cruzado com um tapete, mas farfalhudo muito para além do possível.

Todos se benzem antes de começarem a viagem. E o Santo António está colado em cima do rádio, “para abençoar os caminhos.” Por isso, ninguém usa cinto de segurança. E por isso Valter exala confiança: das curvas apertadas, normalmente em contramão, até às ultrapassagens pela direita, sem esquecer uma boa ultrapassagem numa curva cega, sempre a abrir.

A música vai tão alta que se sente o eco dentro do corpo. O som perde toda a definição, mas isso é absolutamente irrelevante. Importa o rádio fluorescente que Valter comprou: faz quase mais coisas do que a Bimby, com a vantagem de ter um comando à distância, “que dá jeito quando é preciso levar a miúda para o banco de trás mas às vezes tem umas falhas.”

A sua sorte, confessa-me, já quase no fim da viagem, é que, como vai sempre a conduzir, no caso de o comando falhar, só precisa de “esticar o braço e mudar de música com a mão.”

Grogue

O grogue é uma bebida tradicional de Cabo Verde. É feito por mulheres fortes e por homens a cair de bêbedos: há profissões que descem mais às pernas do que outras.

sexta-feira, dezembro 05, 2008

Avó Margarida

Tem um desenho fino, frágil. Um corpo franzino e miúdo. Uma tez serena, feliz, imperturbável. Tem os olhos muito pequenos, negros, escondidos nas rugas da cara.
Está normalmente sentada: ou numa cadeira de plástico que já foi branca, ou no degrau da porta de sua casa, com as pernas dobradas para um lado, com jeitos de princesa.
Chama-se Margarida Gomes Forte. “85 anos, nascida e criada na Praia. Cabo-verdiana natural.”

Tem um bibe igual ao da minha avó, mas muito encardido e com falta de botões. Não cheira como a minha avó. Também tem o cabelo grisalho mas muito mais crespo do que o dela. Tem um casaco de malha muito sujo, preso com um alfinete-de-ama. Tem calçadas umas sandálias que lhe ficam grandes. Tem as unhas dos pés e das mãos por cortar.

Casou aos 23 anos com o homem da sua vida, que fez outras vidas por fora e morreu há muito. Juntos tiveram 12 filhos. Dois morreram; os outros dez estão espalhados pela vizinhança, pelas ilhas e pelo mundo. “Neto nem conto. Ten un monti! Neto, bisneto.. Um monti!”

Margarida tem a vida de todas as mulheres, mais parágrafo, menos parágrafo. E diz-me todos os dias, como quem me benze: “É assim, filha: vida no mundo, vida di alegria, vida di tristeza, vida-tudo. Ten hora qui sabi, ten hora qui ka sabi. Ten hora di tudo. Assim qui nós bai!”.

E ri-se com aquele rir de olhos que já viram o que importava ver. E deixa-se estar, sentada, na corrente de ar, a ser todos dias o desenho da rotina que deixei em casa.

Levanto-me, dou-lhe um beijo e digo-lhe sempre: “Obrigada pela conversa, dona Margarida.”

E penso sempre, sempre, enquanto aceno, garota mimada, cheia de saudades: “daqui a sessenta anos quero ser tão linda como tu. Até amanhã, avó.”

quarta-feira, dezembro 03, 2008

Amor velho, como a cidade


Fica a 80$ e a meia hora do centro da Praia, na escala de tempo de um Iace acolhedor, sempre tão cheio que dá gosto.

A paisagem foge a uns 80 à hora, aos ziguezagues e solavancos. A estrada rasga montanhas de terra, com um recorte perfeito na linha do horizonte.

As colinas estão pontuadas com verdes assimétricos e animais de quinta avulsos.

Percebe-se que o destino está próximo pela arrumação.
A cidade velha vive numa quietude intocável. É uma cidade de antes do cimento, das estradas só de pó e das casas por acabar.

Foi a primeira capital das ilhas de Cabo Verde e o berço da cultura do arquipélago. Começou a crescer a partir de 1942. Está na história como a primeira cidade-porto construída para o tráfico transatlântico de escravos, e foi o caldeirão dos amores entre escravas e senhores portugueses e espanhóis.

A Cidade Velha foi palco da recriação do mundo Altlântico. Agora, é só umas coisas que se passaram há uns séculos.

A vista começa na curva onde se vê o mar pela primeira vez e termina na pequena praça do centro, que desemboca em dois restaurantes com esplanadas coladas ao mar.

À esquerda há cadeiras de plástico e a sombra nas mesas enferrujadas é dada por umas palmeiras pequenas, ratadas e feias. À direita as cadeiras são de verga, as mesas enormes, cobertas com toalhas de linho, impecáveis, tudo à sombra ampla de árvores altíssimas. Acho que nem as moscas são as mesmas. Os galos é que vão e vêm, sem distinguir o canto que fica mais perto dos ricos e o que fica mais perto dos pobres.

Chicharro frito com arroz e saladinha. 200$00. E um café. Antes disso a sorte de haver luz, a sorte de haver água, e a sorte de não ter chegado ali dois dias antes, quando a bomba da máquina se tinha estragado. Café, enfim.

As casas ao lado do restaurante têm uma porta para a beira-mar, outra para a rua principal, que dá para a praça.

Esta casa estava de portas abertas. E tinha um movimento de maré – gente a entrar e a sair; muita gente. Uns vizinhos, outros amigos, outros as duas coisas e muitos deles só curiosos, de passagem.


As janelas e as portas estavam presas com pedras para se manterem abertas. A corrente de ar disfarçava a falta de ventilação. Quando a brisa abrandava, o cheiro era intolerável.
Em primeiro plano estava, sentada numa cadeira de rodas, uma senhora muito mais velha do que as suas rugas deixavam perceber. Amputaram-lhe uma perna há um ano, conta-me depois, muitas vezes seguidas. E depois outra vez. Tem vestido um bibe verde e por cima uma camisola cor-de-rosa. Pelas costas traz um casaco azul-vivo, com círculos brancos. Está descalça.

Ao fundo, num sofá a cair de velho, uma menina de 12 anos ralha com uma de dois, para que coma o iogurte.

“O meu nome é Catarina Pereira de Sousa”, murmura, da cadeira de rodas, num crioulo muito mastigado, que me custa a entender.

“Catarina Pereira de Sousa, o meu nome. Catarina.” Chama-se Catarina Pereira de Sousa muitas vezes todos os dias.


- “Come o iogurte, não tenho tempo, Luna! Come o iogurte, vá!” A moça, num ralhar nervoso e a outra, mais miúda, de beicinho e a ameaçar chorar.
Catarina tem na mão um pano de cozinha, que enrola e desenrola compulsivamente.

- “Não sei quantos filhos tenho. Sete, oito ou nove. Nem sei quem são estas pessoas aqui de casa.”

Não sabe dos netos, nem dos vizinhos, nem dos curiosos. Não sabe de mim mas vai falando. Chama-se de novo Catarina Pereira de Sousa. E grita com toda a gente, nos intervalos da nossa conversa de surdos.

- “Esta casa me pertence. O meu nome é Feliciano Sanches Cimeiro.”

A figura negra, de cabelo crespo e grisalho, vem da porta que dá para a linha do mar. Veste uma camisa azul, mais clara do que o casaco de Catarina, e umas calças que lhe dão pelo tornozelo. Também está descalço.

- “Sou Feliciano Sanches Cimeiro. Esta casa me pertence.”

Tem uma boca grande, sem nenhum dente, e lábios muito grossos.

- “Não te dou mais comida nenhuma hoje se não comes isto! Vá!” E a miúda a virar a cara e a querer sugir do colo da outra.

- “O meu nome é Catarina Pereira de Sousa.”

- “Sou Feliciano Sanches Cimeiro, filho de Cosmi Cimeiro.”

A pequena a chorar, a maior a gritar e Catarina a gritar por cima várias palavras que não entendi, sempre com o olhar perdido no vazio. Enrolava e desenrolava o lenço sempre ao mesmo ritmo.

Parou de gritar e voltou a mim, e voltou a chamar-se Catarina Pereira de Sousa. Respondeu-me sempre isso. Por trás, o seu marido respondeu-me sempre Feliciano Sanches Cimeiro, a tudo, muitas vezes.

- “O senhor Feliciano foi professor toda a vida, adorava dar aulas. Sabia muitas línguas, era doutor. Um doutor. Quando se reformou enlouqueceu. Agora pesca para poder sobreviver.”

- “E a mulher dele, o que tem a Catarina?”

- “A D. Catarina ama o senhor Feliciano. Ele enlouqueceu e ela enlouqueceu com ele”.