quarta-feira, dezembro 10, 2008

O Iace tipo e o tipo do Iace

Valter é iacista. A bem dizer, é um camionista mal amanhado e crioulo. É dono e condutor de um Toyota Hiace, o famoso iáce, onde cabe Cabo Verde inteiro e mais umas tralhas. Tem 25 anos e transpira estilo.

O seu carro é verde escuro porque o dono é um sportinguista convicto. No retrovisor tem um penduricalho que fede a lavanda ou assim; um faz-de-conta-que-isto-alivia-o-cheiro-a-mamífero-transpirado.

- “Tarrafal? ‘Somada?”
E um braço forte, de fora do carro, a chamar passageiros. “Trabalho sozinho, prefiro assim. Eu arranjo as pessoas, compensa.”

Mais acima, no espelho, tem colado o nome da filha, escrito com letras douradas. Aline. “O da mulher é melhor não. Sabes como é, princesa, a vida dá voltas, e o autocolante é difícil de descolar, depois deixava-me marcas no espelho.”

Valter tem uma condução arrojada, domina a viatura num estilo seguro e jactante. Ajudam, claro, os pedais modificados, que têm um adaptador com borrachas, “para aumentar a aderência do pé à chapa”.

“Podia andar a duzentos à hora”, assegura, “mas a gasolina está cara.” Pavoneia-se nas estradas da Praia, enquanto procura clientes, e depois rasga sem piedade a paisagem verde, a caminho do interior. É sexy, irremediavelmente sexy.

- “’Somada! ‘Somada!” O braço é musculado. Coisa trabalhada, bem se vê.

Conduz só com uma mão e aperta a buzina como ninguém: “Criei vários códigos com people meu amigo. Invento maneiras de dizer cenas só a apitar.” É um poeta das buzinadelas. E “pode dar-me umas dicas um dia destes.”

Valter tem brio no seu iace, cuida dele. Lava-o três vezes por semana. “Ele é parte da sua personalidade”, assegura. No tablier há sempre uma coisa que fica entre a ideia que se tem de um cachecol cruzado com um tapete, mas farfalhudo muito para além do possível.

Todos se benzem antes de começarem a viagem. E o Santo António está colado em cima do rádio, “para abençoar os caminhos.” Por isso, ninguém usa cinto de segurança. E por isso Valter exala confiança: das curvas apertadas, normalmente em contramão, até às ultrapassagens pela direita, sem esquecer uma boa ultrapassagem numa curva cega, sempre a abrir.

A música vai tão alta que se sente o eco dentro do corpo. O som perde toda a definição, mas isso é absolutamente irrelevante. Importa o rádio fluorescente que Valter comprou: faz quase mais coisas do que a Bimby, com a vantagem de ter um comando à distância, “que dá jeito quando é preciso levar a miúda para o banco de trás mas às vezes tem umas falhas.”

A sua sorte, confessa-me, já quase no fim da viagem, é que, como vai sempre a conduzir, no caso de o comando falhar, só precisa de “esticar o braço e mudar de música com a mão.”

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