sábado, março 19, 2011

A cantiga, “uma arma de pontaria”

A história do Partido Comunista Português na música, e da música que durante 90 anos foi cantando o partido e os seus ideais, não é linear, não é consensual, mas é uma história que pode ser trauteada.

E antes da história, uma ressalva, que é contexto: “Não é possível isolar enquanto expressão cultural a música de um conjunto de expressões mais variado e muito vasto, onde a influência do partido, desde o cinema até à literatura, nalguns aspetos terá até sido superior”, lembra o militante comunista Ruben de Carvalho.

A música, por depender mais, “quer do domínio do capital, quer do domínio da indústria, e dos meios de comunicação, era mais controlada pelo fascismo”.

Posto isto “no cenário de 90 anos que modificaram completamente a música”, partimos dos anos de 1920, quando Portugal já ouvia cantar a Internacional comunista. Neste primeiro período de vida do partido, fundado em 1921, “o universo sonoro dos militantes é o popular, por um lado, e a canção revolucionária, por outro”, que chegava primeiro de França, depois da Espanha.

E popular aqui é o fado, que, lembra o investigador João Madeira, do Instituto de História Contemporânea, “corresponde, até ao final dos anos 1930, a um fado musicalmente pobre, com letras ajustadas à propaganda”: “Este fado é o fado da propaganda republicana, é o fado dos anarquistas, um veículo de política através da cultura”, diz.

E é o mesmo fado que o regime de Salazar, pelas mãos dos modernistas como António Ferro, apropria para dar som ao fascismo: “Os modernistas têm uma perceção muito clara da capacidade mobilizadora que esta expressão de música popular urbana pode ter e utilizam-na”, explica Ruben de Carvalho.

“Nos anos de 1940 entramos num novo período. O partido é objeto da sua reorganização no princípio da década, e uma das frentes onde atua largamente é a frente cultural”, acrescenta.

Aqui, destaca, é fundamental o papel de Fernando Lopes Graça: “Sendo um militante comunista, é um homem que se empenha politicamente e que tem o desejo de fazer da música um fator de intervenção na atividade política; é um homem musicalmente muito influenciado pelas escolas europeias, um defensor da música tradicional e rural, de composição anónima, transmissão oral; e utiliza a música como elemento de intervenção em termos corais”.

Até aos anos de 1960 “a influência do partido nas associações de estudantes torna-se determinante”. A contestação ao regime agudiza-se, a sociedade é outra, lembra João Madeira: “Dão-se nesta época grandes transformações na sociedade, as universidades recebem muitos estudantes, o tradicional fado de Coimbra transforma-se numa nova canção, musicalmente mais rica, onde o fator de intervenção é muito forte”.

É tempo dos acordes de Zeca Afonso, de Luís Cília, de José Mário Branco, de Adriano Correia de Oliveira. E é, acrescenta Ruben de Carvalho, “o tempo do Zip Zip, onde a canção de intervenção ganha um estatuto e uma capacidade de amplificação que ela nunca tinha tido, e o tempo do festival da Eurovisão”.

E depois, vai a década de 1970 quase a meio, é tempo de revolução, “que começa com música, como em mais nenhuma parte do mundo”. “Grândola, vila morena”, canta o Zeca. “E depois do adeus”, canta Paulo de Carvalho.

Aqui, é claro, “não há nenhuma influência direta do partido”. Há apenas “a cantiga, arma de pontaria”, que o Grupo de Ação Cultural há-de de cantar pelo país durante o ano quente de 1975.

O comunista a quem a PIDE deu um presente

[Texto escrito a propósito dos 90 anos do PCP]

Aurélio Santos foi preso pela polícia política em 1953, no dia em que fazia 23 anos. Um “presente do regime salazarista”, que lhe abriu as portas do partido que havia ser o seu o resto da sua vida.

A história do rapaz de 23 anos que a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) prendeu em 1953 chega a 2011 com um homem de 80 anos a sorrir e a citar Pablo Neruda: “Confesso que vivi. E vivi muito porque participei nesta contribuição para que o mundo se alterasse e a vida se alterasse no meu país”, diz.

Aurélio Santos é militante do Partido Comunista Português (PCP) desde 1957. Ocupou diversos cargos de direção, foi membro do comité central durante quase quarenta anos. O partido faz tanto parte da sua existência como ele mesmo.

A história deste encontro é simples: No início da década de 1950 era ativista e dirigente do Movimento de Unidade Democrática (MUD) Juvenil. Foi preso. Até aí, nunca tinha tido qualquer contacto com o PCP.

“Quando acabou o meu isolamento enviaram-me para uma cela em que estavam alguns dos comunistas que eu mais estimo, como o Carlos Costa ou o Francisco Miguel. Foi na prisão que comecei a conhecer os comunistas e a ter contacto com eles. Devo portanto essa oportunidade ao presente de aniversário que a PIDE me deu”, conta.

Inscreveu-se no PCP já depois de ter saído da prisão. Em 1957 passou à clandestinidade. “Continuava a exercer atividade política e com a vigilância que a PIDE tinha sobre o conjunto da situação portuguesa era muito difícil ter essa atividade e não estar em risco de prisão”.

Os pais haviam de chegar quinze dias depois de Moçambique, mas “a passagem à clandestinidade tinha que ser naquele dia, não podia esperar mais”.

Eles “saíram do barco, estavam à minha espera e eu não estava lá”, recorda. Depois o silêncio até abril de 1974. “Não era possível haver um contacto com a família porque isso dava uma série de pistas à polícia”. O pai morreu antes do abraço, a mãe abraçou-o pelos dois, mesmo “sem compreender as necessidades de uma atividade clandestina”.

À distância de décadas, Aurélio Santos diz que a sua história “não foi nada, comparada com aquilo que algumas pessoas sofreram”. Conta “apenas meia dúzia da bofetões”. E sublinha sempre que valeu a pena.

E depois conta abril: “O 25 de abril foi o grande acontecimento da minha vida, além da prisão e dos primeiros contactos com o movimento comunista. Foi para mim uma revelação de um novo mundo, a possibilidade de intervir mais diretamente na criação dessas novas condições para o meu país e para o mundo em geral”, diz.

Recebeu a notícia do golpe dos capitães na manhã de dia 25, era diretor da rádio do partido desde 1962, a Portugal Livre. “Foi quando nos apercebemos de que os acontecimentos estavam a ser transmitidos em direto, sem censura, que tivemos a convicção unânime de que o regime ia cair”.

Sentado na mesma cadeira vermelha do início desta história, Aurélio Santos olha para os jovens que têm hoje a idade que ele tinha quando foi preso, e que ele considera que “podem mais”.

Rejeita o cliché da “geração à rasca” e argumenta: “Há hoje muitos mais jovens em condições de darem uma grande contribuição para o desenvolvimento do país do que nos anos 1950. Cada geração tem a sua forma de intervir, tem a sua mentalidade, e a confiança que é necessário que eles tenham em si próprios também vem da confiança que temos neles”.

quinta-feira, março 17, 2011

No bairro da Jamaica há mais de 800 pessoas à espera três para o tango

O bairro clandestino da Jamaica, no Seixal, é há 20 anos um problema por resolver. Hoje vivem aqui mais de 800 pessoas à espera de três para dançar o tango. É preciso um acordo entre a câmara (CDU), o Governo e o proprietário.

A história de Maria Teresa Vieira, 61 anos, ajuda a contar a história do bairro: “Toda a minha vida foi ocupar casas, para aqui vim há vinte anos. Fui das primeiras a ocupar. Vivo num apartamento na torre maior”. Sete andares de tijolo e cimento à mostra, envoltos numa instalação elétrica precária, rodeados por poças de esgotos.

Como esta torre há mais. Mães e avós como Maria Teresa Viera também. Mãe de quatro filhos, três presos, avó de duas netas menores, a gerir “uma pensão de 70 euros mensais, mais 40 euros que o pai da mais pequena traz todas as semanas”. Na casa desta mulher, e nas outras do bairro, garante, come-se “sempre o mesmo: frango guisado, que tem que dar para o almoço e para o jantar, e sopa, que dá para três dias”. Há ratos em casa.

Os cerca de cinco hectares de terreno foram abandonados pelo proprietário no final dos anos 1980. Os prédios de hoje são os mesmos daquela altura, mas com famílias dentro. O banco executou uma hipoteca, o problema foi vendido em hasta pública à empresa Urbangol. A ocupação ilegal foi feita nos anos 1990.

Depois disso, o bairro tem sido um problema por resolver. O espaço é um retângulo, ao fundo há um muro alto a delimitar. Os esgotos desembocam nas fundações dos prédios e estão no cheiro do bairro todo. No pátio para onde estão viradas as casas há um parque infantil queimado pelo sol e praticamente destruído.

O abastecimento de água e eletricidade é clandestino, ninguém paga contas. Contam-se dezenas de antenas parabólicas entre os tijolos. Na perspetiva da autarquia, a solução do bairro é ”demolir” e “realojar integrando”, e o desejo é que isso aconteça até 2013. A vereadora da câmara para a Ação Social, Corália Loureiro, afirmou, durante uma visita ao bairro, que o espaço “terá uma solução”: “Mas é claro que a solução não pode passar só pela câmara municipal. Assumimos uma parte, a outra parte terá que ser o Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IRHU) e o proprietário, que é quem tem aqui a responsabilidade maior”.

A autarca acrescentou que “estão a ser feitos esforços”, que “há um plano de pormenor aprovado para o local”, e que “há uma reunião pedida ao IHRU, que já se mostrou disponível para ajudar a resolver a questão”.

Corália Loureiro disse ainda aos jornalistas que, ao longo dos anos, e na medida do possível, “todas as pessoas” abrangidas por planos de realojamento em vigor foram realojadas. Hoje, defendeu, “falta uma linha de apoio, de financiamento, da parte do Governo para que esta situação, e outras como esta, aqui e no país, possam ser resolvidas”.

Pelo bairro, as vozes que se ouvem são de descontentamento. A população diz que já ouviu “muitas datas” e “muitas promessas”.

Em 2004 a câmara assinou um protocolo com a empresa proprietária dos terrenos em que se previa a demolição das torres e o realojamento dos moradores no ano seguinte. Esperaram. Nada. Em 2009 foi aprovado o plano de pormenor para o local. Esperaram. Nada. A vereadora diz que espera ver a situação resolvida até 2013. Os moradores esperam. Ao menos há televisão por cabo.