segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Kadhafi, o tirano gabiru

© Chappatte in “International Herald Tribune”

[Coisa da gaveta. Kadhafi esteve em Lisboa em dezembro de 2007, na Cimeira União Europeia-África. Este texto foi escrito nessa altura. É óbvio por que me veio agora à memória. Os ajustes foram pontuais.]

Chegou com caracóis no cabelo. Os mesmos caracóis que levava, embora talvez com menos estilo e mais rebeldia, quando, em 1969, com 27 anos, mandou da cadeira abaixo o rei. Os mesmos caracóis com que disse depois que não ao comunismo, que não ao capitalismo. Os mesmos com que criou a Jamahiriya, coisa das massas, para depois instaurar o Congresso Nacional do Povo, comités populares e comités revolucionários.

É o senhor da Líbia e, dizem línguas más, um outsider com jeitos de vedeta.

Muammar Al Kadhafi foi, durante pouco mais de uma semana, o senhor da tenda. Dizem as mesmas línguas das linhas acima que, com o que trouxe na bagagem, deixou a Líbia vazia.

Porque é sábio o déspota, e porque Portugal ainda tem memória de como se mima um ditador, Kadhafi deu de si ao povo numa palestra na reitoria da Universidade de Lisboa, depois de trinta minutos de atraso.

A entrada foi igual à saída: o sábio apertadinho em segurança e o povo em apoteose.

O Coronel outsider, em estrangeiro, ou o tirano gabiru, em português, veio espalhar magia com os seus saberes: o que lhe saiu da boca e o que trouxe encadernado no Livro Verde, que editou em setembro de 1976 e trouxe para oferecer.

Vendo a coisa por atacado, é isto: «Os parlamentos foram engolidos, a democracia está deturpada e não se respeita a vontade dos povos». Vendo a coisa mais de perto, o tirano pôs nas letras de capa verde respostas para «o problema da democracia» e para o «problema económico».

Muammar Al Kadhafi diz, do alto da sua roupa colorida, com traços de alta costura, que os políticos nada podem resolver. Acredita, por isso, que é preciso acabar com os parlamentos, desistir das eleições, dar o poder ao povo e deixá-lo defender-se.

A democracia é uma injustiça porque a decisão cai depois dos 50 por cento, e isso pode querer dizer que há 49 por cento de pessoas descontentes. É por isso – e por nenhuma outra razão – que o gabiru que é tirano lidera, sem oposição, um governo totalitário sem sinais de decência.

Pelo mundo tem aconchego. Que é como quem diz que o dinheiro do petróleo não traz democracia, mas amansa o desconforto diplomático do sufoco das liberdades.

«Uns, com a desilusão, batem com a cabeça nas paredes, outros agarram num avião e fazem um atentado. Condenamos estes actos, mas não podemos dizer-lhes para não os fazerem», disse, a propósito dos atentados de 11 de setembro.

Este «político astuto e fazedor de maldades», como lhe chama a BBC, defende que é preciso conversar com os terroristas para perceber as suas motivações. Para o Coronel, os problemas não se resolvem com uma resposta militar ou com um julgamento.

Kadhafi diz ainda que à ONU faltam procedimentos democráticos: «Existem duzentos países na Assembleia-Geral, apenas cinco são membros permanentes do Conselho de Segurança. Isto leva à desilusão e a reacções contrárias. Tirar a riqueza leva a reacções contrárias. Desprezar os outros leva a reacções contrárias», repetiu.

«Atualmente, é uma dúzia de pessoas que decide o futuro do mundo. Uns reagem por palavras, outros usam kamikazes», acrescentou.

De novo a apoteose cá fora e Muammar Al Kadhafi num aperto de segurança. No cabelo, os caracóis do início desta história; nos olhos que se imaginavam por detrás dos óculos escuros, um brilho misto, de quem desconfia da NATO mas mantém um carinho especial pela princesa Diana.

[No dia 15 de fevereiro eclodiu uma revolta popular na Líbia, em protesto contra o regime de Kadhafi. O povo pede o fim do regime. Diz que o peixe morre pela boca.]