quinta-feira, dezembro 24, 2009

Conto de Natal para adultos (ou no escurinho do inverno)

Já passámos por esta amálgama de casas à beira de ruas exíguas, esburacadas, sujas e lamacentas. Já vimos, noutras letras, este novelo clandestino que ganhou forma com o suor que veio depois da vontade de uma vida melhor e que inchou com a droga, o álcool, o desemprego, a criminalidade, as gravidezes de adolescentes, o abuso de menores e a violência doméstica.

Sabemos que estamos no gueto que se fez o bairro do Segundo Torrão, na Trafaria, em Almada, onde vivem mais de 300 famílias, sobretudo imigrantes.

Podíamos vir de olhos fechados, e saberíamos que estamos aqui. Pela lama, que acolhe os sapatos a cada passo, pelo cheiro a álcool de todos os cafés e pelo cansaço na voz de todos os que aqui vivem.

“O inferno do inverno já começou. As ligações de electricidade são tão clandestinas como o resto do bairro, não aguentam luzes e aquecedores ligados em simultâneo. Chegamos a estar quatro dias sem luz de cada vez que há quebras”, ouve-se num sotaque angolano.

Rogério Nazaré, homem alto, corpulento, de olhos grandes e redondos, é presidente da associação de moradores do bairro.

“Temos uma dívida de perto de 280 mil euros à EDP distribuição, que a anterior associação de moradores não conseguiu pagar. Queremos ser a parte da solução, não a parte do problema, mas precisamos que se sentem à mesa connosco”, explicou.

“Estou muito cansado”, desabafou. “Preciso as entidades envolvidas no anterior contrato tenham em conta que no inverno as pessoas têm necessidade de se proteger do frio” e por isso, argumentou, “há que encontrar uma solução urgente que previna a repetição destes episódios”.

“Precisamos que percebam que cada dia entre a demolição e o realojamento é um dia de vida de milhares de pessoas. Sabemos que somos um doente em estado terminal. Só estamos a pedir uma morte com dignidade”, acrescentou.

“As pessoas aqui não vivem, sobrevivem”.

A frase é de Rogério mas podia ser de André Adriano, guineense baixo, feições miúdas, a viver no bairro há 18 anos.

“Nada melhorou desde que cheguei aqui. Este é um bairro vergonhoso. Ninguém que viva aqui diz a todas as pessoas onde mora, só aos amigos mais chegados. As crianças são discriminadas na escola. Parece que morar no Segundo Torrão é ter alguma doença que se pega”.

“Quando chove há pessoas que levam dois calçados, um até à paragem do autocarro, outro que calçam ali – o calçado social – para levarem para a cidade”, contou.

A Câmara Municipal, a Junta de Freguesia e a EDP distribuição concordam com a necessidade de se prevenir estes episódios. Nenhuma das entidades avança datas ou assume compromissos.

Vendo o copo meio cheio, talvez faça jeito que sejam 300 famílias apertadinhas num gueto. Pode ser que assim, passando pelo escurinho do inverno umas coladas às outras, não vejam o frio chegar.

terça-feira, dezembro 15, 2009

Rabelados, com a graça de Deus (capítulo III), "Viver para hoje"

A arrumação das casas começa a desafiar o traço da tradição. A contrastar com as tradicionais casas de colmo – baixas, pequenas, escuras e frescas, feitas à mão – erguem-se casas de cimento que os mais novos constroem, vindos de fora da comunidade, com o dinheiro que juntam.

É hora de almoço. Cheira-se o lume, mais do que a comida. Cozinha-se a lenha. As mulheres que ainda não estão de volta dos tachos não andam longe. Umas chamam os miúdos para ajudar, outras terminam de estender a roupa que lavaram nos mesmos alguidares onde dão banho aos mais pequenos. Há sempre roupa estendida e as cores não se repetem.

A aldeia mexe sempre, não sossega, nem que seja pela pressa nas pernas das crianças. A vida aqui transpira-se em torno da sobrevivência: é preciso tratar da terra, da plantação à colheita; é preciso pescar e tratar dos animais. Vai-se ao mercado quando se conseguiu vender alguma coisa. Não há água canalizada nem luz.

As excepções são a casa dos artistas, onde se pratica a RabelArte, e a casa das diversões, onde há a única televisão da aldeia e, por 10$ (0,10€), uma noite de matraquilhos, a telenovela ou só convívio. Não há sapatos para todos mas há telemóveis para a maioria.

Os sonhos da RabelArte

O ateliê de pintura começa depois de umas escadas de cimento. É fresco e tem o chão de tijolo com várias marcas de tinta. A pintar, de cócoras, está um dos artistas da RabelArte. Tem 22 anos e é uma figura esguia. É Rabelado, claro, mas não é esse o nome que diz em primeiro lugar.

Chama-se Ney e nasceu aqui. É filho de Fico. Desenha e pinta todos os dias, excepto ao Domingo. Faz tudo ao som da música que sai do seu telemóvel, que não descansa dia nenhum. As músicas são as mesmas que saltam das janelas dos carros dos jovens da cidade da Praia para a rua. É como eles que Ney tenta vestir-se, com o dinheiro que consegue juntar.

“Começámos a pintar há dez anos. A Misá, uma artista plástica cabo-verdiana, trouxe os materiais e ensinou-nos a fazer as cores. Os desenhos são todos da nossa imaginação. Tudo sobre a nossa história ou sobre a história de Cabo Verde”, conta.

“Começámos a desenhar em cadernos e a vender os desenhos aos turistas, por muito pouco dinheiro. Fomos crescendo, os nossos desenhos ficaram melhores, começámos a pintar telas e a vender as coisas por um preço mais elevado. Vivo dos meus desenhos”.

Também vive das suas mãos, como o pai, mas não tem o mesmo apego à cruz que devia ter sempre ao pescoço, mas que coloca no banco ao lado das tintas, enquanto trabalha. “Sou feliz mas gostava de ter mais. Gostava de ir à escola. Fui pouco, mal sei escrever o meu nome. Ainda não tenho mulher. Somos cada vez menos aqui, não é fácil casar. Gostava de ver mais coisas, de sair daqui”.

Para o líder, Tchétcho, “os jovens são o futuro da comunidade, mas são muito teimosos, cabeças duras. Os velhos vão morrendo e a cultura fica nas mãos dos mais novos”. Ele quer “ensiná-los a respeitar os velhos, a criar vida e cultura para serem respeitados quando chegarem à velhice”. Quer continuar o trabalho do seu pai.

Ney não acha que seja teimosia: “Querer mais não significa ir embora para sempre. Eu gosto de ajudar a comunidade, mas gostava de um bocadinho mais”, confessa.

Ser um eco da memória

O sol começa a descer. Cheira a café: Apanharam-se e moeram-se os grãos, pôs-se água a ferver: café di terra.

A aldeia acalma-se e prepara-se para a noite, que cai ao som ritmado do batuque e das palmas. A menina pequenina que cozinhou pedras para o almoço traz o tacho e ajuda a marcar o ritmo.

A roupa continua estendida nas cordas entre as casas, a dançar ao vento que entretanto chegou.

Os sonhos de uma vida melhor sobem com a lua, e todas as noites sobem mais porque a luta dos Rabelados já é só um eco da memória: o seu propósito foi-se quando caiu a ditadura e chegou a liberdade, há mais de 30 anos.

sexta-feira, dezembro 11, 2009

Rabelados, com a graça de Deus (capítulo II) "Sem partido, pelo bem"

Nas paredes da sala há pedaços de madeira pendurados com recortes de jornais, fotografias de políticos e várias referências a Amílcar Cabral, símbolo da independência do país. “Gostamos dele porque trouxe liberdade e ajudou o povo”, conta Moisés. “Temo-lo como homem de bem. Ensinou-nos a palavra democracia“.

Moisés não tem partido e não vota. “Recebo todos os que quiserem conversar connosco, falo com eles em nome da comunidade, mas não escolho nenhum. Sou do partido que faz o bem“.

Por regra, os jovens votam, os velhos não. “Mas discursam, e têm ideias”, garante. “Os Rabelados velhos não têm nome, não estão registados. É por isso que não votam. Quem vota tem liberdade de escolha; ninguém está obrigado a nenhum partido, cada um vota no partido que acha que vai fazer o bem”.

A menina pequenina, antes da porta da sala do culto, põe as pedras que cozinhou no pratos dos amigos que imagina e segue conversa com eles.

Tchetcho termina a leitura e fecha o Antigo Testamento. “Este livro é a nossa história. Este exemplar tem séculos; mesmo antes de nos rebelarmos rezávamos com ele. Durante as perseguições esteve enterrado, com muitos outros. Foi assim que os nossos antepassados conseguiram salvá-lo, porque os padres de batina branca queimaram tudo quanto puderam. Mas os Rabelados têm um lado material e um espiritual. O espiritual é o mais importante: a nossa tradição, os nossos valores. Somos poucos, mas somos um povo escolhido de Deus. Poucos mas fortes”.

Os rebeldes

“Revelamo-nos na palavra de Cristo. No Santo Evagelho de Nosso Senhor, Jesus Cristo. Somos Rabelados. Católicos, Apostólicos, Romanos. Revelamo-nos na palavra de Cristo e rebelámo-nos por ela. Estavámos num regime colonial. Eles eram os pais e nós os filhos. Nós não obedecemos, eles castigaram. Rejeitávamos os padres de batina branca, que não conhecíamos, e os seus ensinamentos, que contrariavam os dizeres do nosso Deus. Rebelámo-nos”.

Diz que se chama Rabelado. Não sabe quantos anos tem. Talvez tenha uns 60. Não foi registado, não foi à escola. Foi preso, perseguido, torturado. Passou cinco dias sem comer e sem beber, na prisão. Tem olhos claros, castanhos, com a boina de tecido grosso que traz na cabeça. Fico, como lhe chamam em casa, viveu sempre das suas mãos: é agricultor, como todos aqui, e artesão.

Tchétcho ajuda na tradução e no desenho da história: “O Governo português enviou para cá padres da Congregação do Espírito Santo; os padres modernos. Vieram para mudar tudo: mandamentos, casamento, doutrina, baptismo, bíblia, oração. Mudaram tudo. Metade do povo cabo-verdiano aceitou, outra metade não. Esses foram os rebeldes”.

Fugiram, espalharam-se pelas montanhas, e isolaram-se. “Preferimos o sofrimento aos falsos profetas. Sabíamos que eles viriam, estava tudo escrito: vestidos de ovelha, virão lobos para devorar o fruto do Senhor”, diz Tchétcho.

Durante décadas rejeitaram qualquer ligação com o Estado ou com a sociedade: não se registavam nem iam à escola, que estava a cargo das missões; não trabalhavam para o Estado nem iam ao hospital; não ouviam rádio, não liam jornais e não viam televisão, que eram coisas do demónio; não se casavam nem se baptizavam: “O nosso casamento é sacramento, comportamento e amor. Quando um homem e uma mulher se gostam, já estão casados”, explica o líder.

Lisboa julgou-os conspiradores, hereges, subversivos e perigosos. Perseguiu-os, torturou-os, julgou-os e deportou-os para outras ilhas.

“Não matámos, não roubámos, não fizemos mal a ninguém. Mas sofremos muito. A minha irmã nasceu na cadeia. Ficámos como formigas debaixo de pedra”, recorda Fico.

"Perguntaram-nos: Se não querem casa, se não querem nome, se não querem dinheiro, escola ou trabalhar para o Estado, onde ficam? O que vai ser de vocês?” e nós dissemos: “Ficamos com Jesus Cristo”.

Cruz: nome e documento

Fico tem ao peito, por debaixo da camisola, uma cruz de madeira, presa num fio de lã. “Todos a usamos”, afirma. “A cruz é tudo o que temos. É símbolo de Cristo, nosso nome e nosso documento. É uma protecção da alma contra os demónios”, explica.

Até há uma década, os Rabelados só iam ao hospital em casos de absoluta emergência. E essa ainda é a regra para os mais velhos. “Nós sobrevivemos dos milagres de Deus. Tudo o que nasce da terra é obra de Deus. Nunca fomos mais pobres do que as outras pessoas, nunca morremos antes dos outros por não irmos a médicos”, defende Fico. “Curavamo-nos apenas com rezas e ervas medicinais”.

“E no hospital nunca temos nome. Sempre Rabelados. Como na morte. Não há nome na sepultura, só o de todos: Rabelados”.
O tom de voz de Tchétcho não sobe, mesmo quando se entusiasma. “Tem calma de líder”, brinca Fico.

Tchétcho afirma que já não há razões para que os Rabelados sejam uma comunidade tão fechada: “Sofremos, como Cristo, para podermos ser salvos. Agora estamos salvos, seguimos a nossa vontade. Antigamente éramos fechados, agora temos mais contacto com a sociedade: ouvimos rádio, vemos televisão e aprendemos. Usamos telemóveis. Os Rabeladinhos já vão todos à escola. Acho que temos que seguir caminho. Eu quero que avancemos e acho que esse trabalho tem que ser feito com os jovens”.

Hoje, garante Fico, “os Rabelados estão em todos os cantos do mundo”.

quinta-feira, dezembro 10, 2009

Rabelados, com a graça de Deus (capítulo I)

“Vamos a todo o lado sem nome. O nosso nome é Rabelados, com a graça de Deus”, começa, num crioulo cerrado, uma figura mulata, baixa e magra, com olhos claros e uma cruz de madeira ao pescoço: “Vamos a todo o lado sem nome”, insiste. “Ou pelo menos íamos. Esta é a história do nosso caminho.”

Vivia-se a década de 40 do século passado. A metrópole salazarista queria garantir mão firme nas colónias e a igreja ajudou, evangelizando. Na ilha de Santiago, em Cabo Verde, os Rabelados – como haviam de chamar-se – bateram o pé e enfrentaram a fúria de Lisboa, pela liberdade do seu Deus. Ficaram na história como símbolo de resistência ao poder da ditadura. Hoje, a luta é outra: batem-se pela sobrevivência, pela tradição e pelo diálogo com a sociedade de que fugiram, e que ainda os olha de viés. Os Rabelados procuram um propósito, porque a liberdade apagou o seu.

Sábado, dia de congregação

A aldeia fica em Espinho Branco, Calheta, ilha de Santiago, Cabo Verde, num cotovelo recortado, quase dentro do Atlântico. À volta há azul-mar e azul-céu, encaixados nas montanhas de rocha, terra e verde. Os vales e as colinas têm extensas plantações de milho, grão, feijão e batata e são pontuados por casas de colmo e animais de quinta. Entre as casas, num espaço plano, há miúdos que jogam futebol, ao fundo outros correm atrás de arcos de metal e de pneus velhos. O resto dos caminhos têm mulheres com a vida à cabeça.

Estima-se que haja cerca de 2 mil Rabelados na ilha de Santiago. Nesta aldeia, a maior de todas, há 400.

É sábado, dia de congregação. Reúne-se sempre na mesma casa de colmo quem quer ouvir a palavra de Deus, que sai da boca do líder. À porta está uma menina pequenina, a brincar: faz de conta que faz o almoço, tem pedras num tacho velho, e mexe-as, sempre a conversar consigo. Na sala depois da porta há bancos de madeira corridos, a fugir ao sol que entra pelas gretas que fazem a vez de janelas nas paredes.

Sabedoria divina

Moisés Lopes Pereira, 26 anos, é líder da comunidade há dois, desde que o seu pai morreu. É ele quem lê – com a dificuldade de quem nunca foi à escola e “aprendeu com Deus a juntar as letras” – o antigo Testamento.
“Sou a cabeça desta comunidade”, afirma. “O papel do líder é representar e conduzir o seu povo e ler a escritura. É isso que faço. Faço justiça: analiso os casos de conflito, dou a minha sentença mas nunca atribuo castigos. Os Rabelados são contra qualquer tipo de violência. Aconselho as pessoas, ajudo-as, esclareço-as. Sou uma defesa e uma protecção para o meu povo”.

Para Tchétcho – como prefere que lhe chamem – a idade não tem nenhuma relação com a sabedoria e o facto de ter idade para ser neto de alguns dos anciãos da comunidade não diminui a sua segurança nem a sua convicção:Sou jovem, sem dúvida, mas jovem é igual a velho, velho é igual a jovem. O que é grande é a sabedoria. É claro que sou o mais indicado para ser o chefe. É assim desde pequeno, porque foi Deus que decidiu. O meu pai estudou 19 escrituras sagradas, estudou muito mais do que eu, mas não faz mal. A sabedoria é grande”.

As pessoas entram e saem. Nunca há mais de sete a assistir. São todas velhas à excepção da menina que cozinha pedras. A leitura segue com uma eloquência tremida, indiferente aos movimentos na sala e ao burburinho que sugere que se passa ali também para cumprimentar uns vizinhos e saber de outros. Entra um cão que procura festas e, debaixo da ombreira da porta, permanece um homem muito velho, sentado, que completa, muito antes do líder, todas as frases da leitura.

No centro da casa há uma grande cruz de madeira, em frente à qual se ajoelha quem chega.

Durante várias gerações a religião foi a escola dos Rabelados. Só o líder sabia ler e escrever. Ensinava-se aos pequenos “a oração, as doutrinas, a fé, a virtude, a justiça, as boas acções e o bom caminho”.

Para além da Bíblia, tinham como base o Lunário Perpétuo e um Tratado de Medicina. Hoje, afirma Moisés, “as coisas estão diferentes. Já todos os Rabeladinhos vão à escola. As pessoas têm mais ambições, saem daqui para trabalhar fora e não apenas na agricultura. Umas voltam, constituem família, outras ficam por lá”.