terça-feira, dezembro 15, 2009

Rabelados, com a graça de Deus (capítulo III), "Viver para hoje"

A arrumação das casas começa a desafiar o traço da tradição. A contrastar com as tradicionais casas de colmo – baixas, pequenas, escuras e frescas, feitas à mão – erguem-se casas de cimento que os mais novos constroem, vindos de fora da comunidade, com o dinheiro que juntam.

É hora de almoço. Cheira-se o lume, mais do que a comida. Cozinha-se a lenha. As mulheres que ainda não estão de volta dos tachos não andam longe. Umas chamam os miúdos para ajudar, outras terminam de estender a roupa que lavaram nos mesmos alguidares onde dão banho aos mais pequenos. Há sempre roupa estendida e as cores não se repetem.

A aldeia mexe sempre, não sossega, nem que seja pela pressa nas pernas das crianças. A vida aqui transpira-se em torno da sobrevivência: é preciso tratar da terra, da plantação à colheita; é preciso pescar e tratar dos animais. Vai-se ao mercado quando se conseguiu vender alguma coisa. Não há água canalizada nem luz.

As excepções são a casa dos artistas, onde se pratica a RabelArte, e a casa das diversões, onde há a única televisão da aldeia e, por 10$ (0,10€), uma noite de matraquilhos, a telenovela ou só convívio. Não há sapatos para todos mas há telemóveis para a maioria.

Os sonhos da RabelArte

O ateliê de pintura começa depois de umas escadas de cimento. É fresco e tem o chão de tijolo com várias marcas de tinta. A pintar, de cócoras, está um dos artistas da RabelArte. Tem 22 anos e é uma figura esguia. É Rabelado, claro, mas não é esse o nome que diz em primeiro lugar.

Chama-se Ney e nasceu aqui. É filho de Fico. Desenha e pinta todos os dias, excepto ao Domingo. Faz tudo ao som da música que sai do seu telemóvel, que não descansa dia nenhum. As músicas são as mesmas que saltam das janelas dos carros dos jovens da cidade da Praia para a rua. É como eles que Ney tenta vestir-se, com o dinheiro que consegue juntar.

“Começámos a pintar há dez anos. A Misá, uma artista plástica cabo-verdiana, trouxe os materiais e ensinou-nos a fazer as cores. Os desenhos são todos da nossa imaginação. Tudo sobre a nossa história ou sobre a história de Cabo Verde”, conta.

“Começámos a desenhar em cadernos e a vender os desenhos aos turistas, por muito pouco dinheiro. Fomos crescendo, os nossos desenhos ficaram melhores, começámos a pintar telas e a vender as coisas por um preço mais elevado. Vivo dos meus desenhos”.

Também vive das suas mãos, como o pai, mas não tem o mesmo apego à cruz que devia ter sempre ao pescoço, mas que coloca no banco ao lado das tintas, enquanto trabalha. “Sou feliz mas gostava de ter mais. Gostava de ir à escola. Fui pouco, mal sei escrever o meu nome. Ainda não tenho mulher. Somos cada vez menos aqui, não é fácil casar. Gostava de ver mais coisas, de sair daqui”.

Para o líder, Tchétcho, “os jovens são o futuro da comunidade, mas são muito teimosos, cabeças duras. Os velhos vão morrendo e a cultura fica nas mãos dos mais novos”. Ele quer “ensiná-los a respeitar os velhos, a criar vida e cultura para serem respeitados quando chegarem à velhice”. Quer continuar o trabalho do seu pai.

Ney não acha que seja teimosia: “Querer mais não significa ir embora para sempre. Eu gosto de ajudar a comunidade, mas gostava de um bocadinho mais”, confessa.

Ser um eco da memória

O sol começa a descer. Cheira a café: Apanharam-se e moeram-se os grãos, pôs-se água a ferver: café di terra.

A aldeia acalma-se e prepara-se para a noite, que cai ao som ritmado do batuque e das palmas. A menina pequenina que cozinhou pedras para o almoço traz o tacho e ajuda a marcar o ritmo.

A roupa continua estendida nas cordas entre as casas, a dançar ao vento que entretanto chegou.

Os sonhos de uma vida melhor sobem com a lua, e todas as noites sobem mais porque a luta dos Rabelados já é só um eco da memória: o seu propósito foi-se quando caiu a ditadura e chegou a liberdade, há mais de 30 anos.

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