sexta-feira, dezembro 11, 2009

Rabelados, com a graça de Deus (capítulo II) "Sem partido, pelo bem"

Nas paredes da sala há pedaços de madeira pendurados com recortes de jornais, fotografias de políticos e várias referências a Amílcar Cabral, símbolo da independência do país. “Gostamos dele porque trouxe liberdade e ajudou o povo”, conta Moisés. “Temo-lo como homem de bem. Ensinou-nos a palavra democracia“.

Moisés não tem partido e não vota. “Recebo todos os que quiserem conversar connosco, falo com eles em nome da comunidade, mas não escolho nenhum. Sou do partido que faz o bem“.

Por regra, os jovens votam, os velhos não. “Mas discursam, e têm ideias”, garante. “Os Rabelados velhos não têm nome, não estão registados. É por isso que não votam. Quem vota tem liberdade de escolha; ninguém está obrigado a nenhum partido, cada um vota no partido que acha que vai fazer o bem”.

A menina pequenina, antes da porta da sala do culto, põe as pedras que cozinhou no pratos dos amigos que imagina e segue conversa com eles.

Tchetcho termina a leitura e fecha o Antigo Testamento. “Este livro é a nossa história. Este exemplar tem séculos; mesmo antes de nos rebelarmos rezávamos com ele. Durante as perseguições esteve enterrado, com muitos outros. Foi assim que os nossos antepassados conseguiram salvá-lo, porque os padres de batina branca queimaram tudo quanto puderam. Mas os Rabelados têm um lado material e um espiritual. O espiritual é o mais importante: a nossa tradição, os nossos valores. Somos poucos, mas somos um povo escolhido de Deus. Poucos mas fortes”.

Os rebeldes

“Revelamo-nos na palavra de Cristo. No Santo Evagelho de Nosso Senhor, Jesus Cristo. Somos Rabelados. Católicos, Apostólicos, Romanos. Revelamo-nos na palavra de Cristo e rebelámo-nos por ela. Estavámos num regime colonial. Eles eram os pais e nós os filhos. Nós não obedecemos, eles castigaram. Rejeitávamos os padres de batina branca, que não conhecíamos, e os seus ensinamentos, que contrariavam os dizeres do nosso Deus. Rebelámo-nos”.

Diz que se chama Rabelado. Não sabe quantos anos tem. Talvez tenha uns 60. Não foi registado, não foi à escola. Foi preso, perseguido, torturado. Passou cinco dias sem comer e sem beber, na prisão. Tem olhos claros, castanhos, com a boina de tecido grosso que traz na cabeça. Fico, como lhe chamam em casa, viveu sempre das suas mãos: é agricultor, como todos aqui, e artesão.

Tchétcho ajuda na tradução e no desenho da história: “O Governo português enviou para cá padres da Congregação do Espírito Santo; os padres modernos. Vieram para mudar tudo: mandamentos, casamento, doutrina, baptismo, bíblia, oração. Mudaram tudo. Metade do povo cabo-verdiano aceitou, outra metade não. Esses foram os rebeldes”.

Fugiram, espalharam-se pelas montanhas, e isolaram-se. “Preferimos o sofrimento aos falsos profetas. Sabíamos que eles viriam, estava tudo escrito: vestidos de ovelha, virão lobos para devorar o fruto do Senhor”, diz Tchétcho.

Durante décadas rejeitaram qualquer ligação com o Estado ou com a sociedade: não se registavam nem iam à escola, que estava a cargo das missões; não trabalhavam para o Estado nem iam ao hospital; não ouviam rádio, não liam jornais e não viam televisão, que eram coisas do demónio; não se casavam nem se baptizavam: “O nosso casamento é sacramento, comportamento e amor. Quando um homem e uma mulher se gostam, já estão casados”, explica o líder.

Lisboa julgou-os conspiradores, hereges, subversivos e perigosos. Perseguiu-os, torturou-os, julgou-os e deportou-os para outras ilhas.

“Não matámos, não roubámos, não fizemos mal a ninguém. Mas sofremos muito. A minha irmã nasceu na cadeia. Ficámos como formigas debaixo de pedra”, recorda Fico.

"Perguntaram-nos: Se não querem casa, se não querem nome, se não querem dinheiro, escola ou trabalhar para o Estado, onde ficam? O que vai ser de vocês?” e nós dissemos: “Ficamos com Jesus Cristo”.

Cruz: nome e documento

Fico tem ao peito, por debaixo da camisola, uma cruz de madeira, presa num fio de lã. “Todos a usamos”, afirma. “A cruz é tudo o que temos. É símbolo de Cristo, nosso nome e nosso documento. É uma protecção da alma contra os demónios”, explica.

Até há uma década, os Rabelados só iam ao hospital em casos de absoluta emergência. E essa ainda é a regra para os mais velhos. “Nós sobrevivemos dos milagres de Deus. Tudo o que nasce da terra é obra de Deus. Nunca fomos mais pobres do que as outras pessoas, nunca morremos antes dos outros por não irmos a médicos”, defende Fico. “Curavamo-nos apenas com rezas e ervas medicinais”.

“E no hospital nunca temos nome. Sempre Rabelados. Como na morte. Não há nome na sepultura, só o de todos: Rabelados”.
O tom de voz de Tchétcho não sobe, mesmo quando se entusiasma. “Tem calma de líder”, brinca Fico.

Tchétcho afirma que já não há razões para que os Rabelados sejam uma comunidade tão fechada: “Sofremos, como Cristo, para podermos ser salvos. Agora estamos salvos, seguimos a nossa vontade. Antigamente éramos fechados, agora temos mais contacto com a sociedade: ouvimos rádio, vemos televisão e aprendemos. Usamos telemóveis. Os Rabeladinhos já vão todos à escola. Acho que temos que seguir caminho. Eu quero que avancemos e acho que esse trabalho tem que ser feito com os jovens”.

Hoje, garante Fico, “os Rabelados estão em todos os cantos do mundo”.

1 comentário:

LiMpA_ViAs disse...

Já nao aqui vinha à algum tempo! Jornalista sempre em forma!

Como ta tudo?

Beijinho