quinta-feira, dezembro 24, 2009

Conto de Natal para adultos (ou no escurinho do inverno)

Já passámos por esta amálgama de casas à beira de ruas exíguas, esburacadas, sujas e lamacentas. Já vimos, noutras letras, este novelo clandestino que ganhou forma com o suor que veio depois da vontade de uma vida melhor e que inchou com a droga, o álcool, o desemprego, a criminalidade, as gravidezes de adolescentes, o abuso de menores e a violência doméstica.

Sabemos que estamos no gueto que se fez o bairro do Segundo Torrão, na Trafaria, em Almada, onde vivem mais de 300 famílias, sobretudo imigrantes.

Podíamos vir de olhos fechados, e saberíamos que estamos aqui. Pela lama, que acolhe os sapatos a cada passo, pelo cheiro a álcool de todos os cafés e pelo cansaço na voz de todos os que aqui vivem.

“O inferno do inverno já começou. As ligações de electricidade são tão clandestinas como o resto do bairro, não aguentam luzes e aquecedores ligados em simultâneo. Chegamos a estar quatro dias sem luz de cada vez que há quebras”, ouve-se num sotaque angolano.

Rogério Nazaré, homem alto, corpulento, de olhos grandes e redondos, é presidente da associação de moradores do bairro.

“Temos uma dívida de perto de 280 mil euros à EDP distribuição, que a anterior associação de moradores não conseguiu pagar. Queremos ser a parte da solução, não a parte do problema, mas precisamos que se sentem à mesa connosco”, explicou.

“Estou muito cansado”, desabafou. “Preciso as entidades envolvidas no anterior contrato tenham em conta que no inverno as pessoas têm necessidade de se proteger do frio” e por isso, argumentou, “há que encontrar uma solução urgente que previna a repetição destes episódios”.

“Precisamos que percebam que cada dia entre a demolição e o realojamento é um dia de vida de milhares de pessoas. Sabemos que somos um doente em estado terminal. Só estamos a pedir uma morte com dignidade”, acrescentou.

“As pessoas aqui não vivem, sobrevivem”.

A frase é de Rogério mas podia ser de André Adriano, guineense baixo, feições miúdas, a viver no bairro há 18 anos.

“Nada melhorou desde que cheguei aqui. Este é um bairro vergonhoso. Ninguém que viva aqui diz a todas as pessoas onde mora, só aos amigos mais chegados. As crianças são discriminadas na escola. Parece que morar no Segundo Torrão é ter alguma doença que se pega”.

“Quando chove há pessoas que levam dois calçados, um até à paragem do autocarro, outro que calçam ali – o calçado social – para levarem para a cidade”, contou.

A Câmara Municipal, a Junta de Freguesia e a EDP distribuição concordam com a necessidade de se prevenir estes episódios. Nenhuma das entidades avança datas ou assume compromissos.

Vendo o copo meio cheio, talvez faça jeito que sejam 300 famílias apertadinhas num gueto. Pode ser que assim, passando pelo escurinho do inverno umas coladas às outras, não vejam o frio chegar.

terça-feira, dezembro 15, 2009

Rabelados, com a graça de Deus (capítulo III), "Viver para hoje"

A arrumação das casas começa a desafiar o traço da tradição. A contrastar com as tradicionais casas de colmo – baixas, pequenas, escuras e frescas, feitas à mão – erguem-se casas de cimento que os mais novos constroem, vindos de fora da comunidade, com o dinheiro que juntam.

É hora de almoço. Cheira-se o lume, mais do que a comida. Cozinha-se a lenha. As mulheres que ainda não estão de volta dos tachos não andam longe. Umas chamam os miúdos para ajudar, outras terminam de estender a roupa que lavaram nos mesmos alguidares onde dão banho aos mais pequenos. Há sempre roupa estendida e as cores não se repetem.

A aldeia mexe sempre, não sossega, nem que seja pela pressa nas pernas das crianças. A vida aqui transpira-se em torno da sobrevivência: é preciso tratar da terra, da plantação à colheita; é preciso pescar e tratar dos animais. Vai-se ao mercado quando se conseguiu vender alguma coisa. Não há água canalizada nem luz.

As excepções são a casa dos artistas, onde se pratica a RabelArte, e a casa das diversões, onde há a única televisão da aldeia e, por 10$ (0,10€), uma noite de matraquilhos, a telenovela ou só convívio. Não há sapatos para todos mas há telemóveis para a maioria.

Os sonhos da RabelArte

O ateliê de pintura começa depois de umas escadas de cimento. É fresco e tem o chão de tijolo com várias marcas de tinta. A pintar, de cócoras, está um dos artistas da RabelArte. Tem 22 anos e é uma figura esguia. É Rabelado, claro, mas não é esse o nome que diz em primeiro lugar.

Chama-se Ney e nasceu aqui. É filho de Fico. Desenha e pinta todos os dias, excepto ao Domingo. Faz tudo ao som da música que sai do seu telemóvel, que não descansa dia nenhum. As músicas são as mesmas que saltam das janelas dos carros dos jovens da cidade da Praia para a rua. É como eles que Ney tenta vestir-se, com o dinheiro que consegue juntar.

“Começámos a pintar há dez anos. A Misá, uma artista plástica cabo-verdiana, trouxe os materiais e ensinou-nos a fazer as cores. Os desenhos são todos da nossa imaginação. Tudo sobre a nossa história ou sobre a história de Cabo Verde”, conta.

“Começámos a desenhar em cadernos e a vender os desenhos aos turistas, por muito pouco dinheiro. Fomos crescendo, os nossos desenhos ficaram melhores, começámos a pintar telas e a vender as coisas por um preço mais elevado. Vivo dos meus desenhos”.

Também vive das suas mãos, como o pai, mas não tem o mesmo apego à cruz que devia ter sempre ao pescoço, mas que coloca no banco ao lado das tintas, enquanto trabalha. “Sou feliz mas gostava de ter mais. Gostava de ir à escola. Fui pouco, mal sei escrever o meu nome. Ainda não tenho mulher. Somos cada vez menos aqui, não é fácil casar. Gostava de ver mais coisas, de sair daqui”.

Para o líder, Tchétcho, “os jovens são o futuro da comunidade, mas são muito teimosos, cabeças duras. Os velhos vão morrendo e a cultura fica nas mãos dos mais novos”. Ele quer “ensiná-los a respeitar os velhos, a criar vida e cultura para serem respeitados quando chegarem à velhice”. Quer continuar o trabalho do seu pai.

Ney não acha que seja teimosia: “Querer mais não significa ir embora para sempre. Eu gosto de ajudar a comunidade, mas gostava de um bocadinho mais”, confessa.

Ser um eco da memória

O sol começa a descer. Cheira a café: Apanharam-se e moeram-se os grãos, pôs-se água a ferver: café di terra.

A aldeia acalma-se e prepara-se para a noite, que cai ao som ritmado do batuque e das palmas. A menina pequenina que cozinhou pedras para o almoço traz o tacho e ajuda a marcar o ritmo.

A roupa continua estendida nas cordas entre as casas, a dançar ao vento que entretanto chegou.

Os sonhos de uma vida melhor sobem com a lua, e todas as noites sobem mais porque a luta dos Rabelados já é só um eco da memória: o seu propósito foi-se quando caiu a ditadura e chegou a liberdade, há mais de 30 anos.

sexta-feira, dezembro 11, 2009

Rabelados, com a graça de Deus (capítulo II) "Sem partido, pelo bem"

Nas paredes da sala há pedaços de madeira pendurados com recortes de jornais, fotografias de políticos e várias referências a Amílcar Cabral, símbolo da independência do país. “Gostamos dele porque trouxe liberdade e ajudou o povo”, conta Moisés. “Temo-lo como homem de bem. Ensinou-nos a palavra democracia“.

Moisés não tem partido e não vota. “Recebo todos os que quiserem conversar connosco, falo com eles em nome da comunidade, mas não escolho nenhum. Sou do partido que faz o bem“.

Por regra, os jovens votam, os velhos não. “Mas discursam, e têm ideias”, garante. “Os Rabelados velhos não têm nome, não estão registados. É por isso que não votam. Quem vota tem liberdade de escolha; ninguém está obrigado a nenhum partido, cada um vota no partido que acha que vai fazer o bem”.

A menina pequenina, antes da porta da sala do culto, põe as pedras que cozinhou no pratos dos amigos que imagina e segue conversa com eles.

Tchetcho termina a leitura e fecha o Antigo Testamento. “Este livro é a nossa história. Este exemplar tem séculos; mesmo antes de nos rebelarmos rezávamos com ele. Durante as perseguições esteve enterrado, com muitos outros. Foi assim que os nossos antepassados conseguiram salvá-lo, porque os padres de batina branca queimaram tudo quanto puderam. Mas os Rabelados têm um lado material e um espiritual. O espiritual é o mais importante: a nossa tradição, os nossos valores. Somos poucos, mas somos um povo escolhido de Deus. Poucos mas fortes”.

Os rebeldes

“Revelamo-nos na palavra de Cristo. No Santo Evagelho de Nosso Senhor, Jesus Cristo. Somos Rabelados. Católicos, Apostólicos, Romanos. Revelamo-nos na palavra de Cristo e rebelámo-nos por ela. Estavámos num regime colonial. Eles eram os pais e nós os filhos. Nós não obedecemos, eles castigaram. Rejeitávamos os padres de batina branca, que não conhecíamos, e os seus ensinamentos, que contrariavam os dizeres do nosso Deus. Rebelámo-nos”.

Diz que se chama Rabelado. Não sabe quantos anos tem. Talvez tenha uns 60. Não foi registado, não foi à escola. Foi preso, perseguido, torturado. Passou cinco dias sem comer e sem beber, na prisão. Tem olhos claros, castanhos, com a boina de tecido grosso que traz na cabeça. Fico, como lhe chamam em casa, viveu sempre das suas mãos: é agricultor, como todos aqui, e artesão.

Tchétcho ajuda na tradução e no desenho da história: “O Governo português enviou para cá padres da Congregação do Espírito Santo; os padres modernos. Vieram para mudar tudo: mandamentos, casamento, doutrina, baptismo, bíblia, oração. Mudaram tudo. Metade do povo cabo-verdiano aceitou, outra metade não. Esses foram os rebeldes”.

Fugiram, espalharam-se pelas montanhas, e isolaram-se. “Preferimos o sofrimento aos falsos profetas. Sabíamos que eles viriam, estava tudo escrito: vestidos de ovelha, virão lobos para devorar o fruto do Senhor”, diz Tchétcho.

Durante décadas rejeitaram qualquer ligação com o Estado ou com a sociedade: não se registavam nem iam à escola, que estava a cargo das missões; não trabalhavam para o Estado nem iam ao hospital; não ouviam rádio, não liam jornais e não viam televisão, que eram coisas do demónio; não se casavam nem se baptizavam: “O nosso casamento é sacramento, comportamento e amor. Quando um homem e uma mulher se gostam, já estão casados”, explica o líder.

Lisboa julgou-os conspiradores, hereges, subversivos e perigosos. Perseguiu-os, torturou-os, julgou-os e deportou-os para outras ilhas.

“Não matámos, não roubámos, não fizemos mal a ninguém. Mas sofremos muito. A minha irmã nasceu na cadeia. Ficámos como formigas debaixo de pedra”, recorda Fico.

"Perguntaram-nos: Se não querem casa, se não querem nome, se não querem dinheiro, escola ou trabalhar para o Estado, onde ficam? O que vai ser de vocês?” e nós dissemos: “Ficamos com Jesus Cristo”.

Cruz: nome e documento

Fico tem ao peito, por debaixo da camisola, uma cruz de madeira, presa num fio de lã. “Todos a usamos”, afirma. “A cruz é tudo o que temos. É símbolo de Cristo, nosso nome e nosso documento. É uma protecção da alma contra os demónios”, explica.

Até há uma década, os Rabelados só iam ao hospital em casos de absoluta emergência. E essa ainda é a regra para os mais velhos. “Nós sobrevivemos dos milagres de Deus. Tudo o que nasce da terra é obra de Deus. Nunca fomos mais pobres do que as outras pessoas, nunca morremos antes dos outros por não irmos a médicos”, defende Fico. “Curavamo-nos apenas com rezas e ervas medicinais”.

“E no hospital nunca temos nome. Sempre Rabelados. Como na morte. Não há nome na sepultura, só o de todos: Rabelados”.
O tom de voz de Tchétcho não sobe, mesmo quando se entusiasma. “Tem calma de líder”, brinca Fico.

Tchétcho afirma que já não há razões para que os Rabelados sejam uma comunidade tão fechada: “Sofremos, como Cristo, para podermos ser salvos. Agora estamos salvos, seguimos a nossa vontade. Antigamente éramos fechados, agora temos mais contacto com a sociedade: ouvimos rádio, vemos televisão e aprendemos. Usamos telemóveis. Os Rabeladinhos já vão todos à escola. Acho que temos que seguir caminho. Eu quero que avancemos e acho que esse trabalho tem que ser feito com os jovens”.

Hoje, garante Fico, “os Rabelados estão em todos os cantos do mundo”.

quinta-feira, dezembro 10, 2009

Rabelados, com a graça de Deus (capítulo I)

“Vamos a todo o lado sem nome. O nosso nome é Rabelados, com a graça de Deus”, começa, num crioulo cerrado, uma figura mulata, baixa e magra, com olhos claros e uma cruz de madeira ao pescoço: “Vamos a todo o lado sem nome”, insiste. “Ou pelo menos íamos. Esta é a história do nosso caminho.”

Vivia-se a década de 40 do século passado. A metrópole salazarista queria garantir mão firme nas colónias e a igreja ajudou, evangelizando. Na ilha de Santiago, em Cabo Verde, os Rabelados – como haviam de chamar-se – bateram o pé e enfrentaram a fúria de Lisboa, pela liberdade do seu Deus. Ficaram na história como símbolo de resistência ao poder da ditadura. Hoje, a luta é outra: batem-se pela sobrevivência, pela tradição e pelo diálogo com a sociedade de que fugiram, e que ainda os olha de viés. Os Rabelados procuram um propósito, porque a liberdade apagou o seu.

Sábado, dia de congregação

A aldeia fica em Espinho Branco, Calheta, ilha de Santiago, Cabo Verde, num cotovelo recortado, quase dentro do Atlântico. À volta há azul-mar e azul-céu, encaixados nas montanhas de rocha, terra e verde. Os vales e as colinas têm extensas plantações de milho, grão, feijão e batata e são pontuados por casas de colmo e animais de quinta. Entre as casas, num espaço plano, há miúdos que jogam futebol, ao fundo outros correm atrás de arcos de metal e de pneus velhos. O resto dos caminhos têm mulheres com a vida à cabeça.

Estima-se que haja cerca de 2 mil Rabelados na ilha de Santiago. Nesta aldeia, a maior de todas, há 400.

É sábado, dia de congregação. Reúne-se sempre na mesma casa de colmo quem quer ouvir a palavra de Deus, que sai da boca do líder. À porta está uma menina pequenina, a brincar: faz de conta que faz o almoço, tem pedras num tacho velho, e mexe-as, sempre a conversar consigo. Na sala depois da porta há bancos de madeira corridos, a fugir ao sol que entra pelas gretas que fazem a vez de janelas nas paredes.

Sabedoria divina

Moisés Lopes Pereira, 26 anos, é líder da comunidade há dois, desde que o seu pai morreu. É ele quem lê – com a dificuldade de quem nunca foi à escola e “aprendeu com Deus a juntar as letras” – o antigo Testamento.
“Sou a cabeça desta comunidade”, afirma. “O papel do líder é representar e conduzir o seu povo e ler a escritura. É isso que faço. Faço justiça: analiso os casos de conflito, dou a minha sentença mas nunca atribuo castigos. Os Rabelados são contra qualquer tipo de violência. Aconselho as pessoas, ajudo-as, esclareço-as. Sou uma defesa e uma protecção para o meu povo”.

Para Tchétcho – como prefere que lhe chamem – a idade não tem nenhuma relação com a sabedoria e o facto de ter idade para ser neto de alguns dos anciãos da comunidade não diminui a sua segurança nem a sua convicção:Sou jovem, sem dúvida, mas jovem é igual a velho, velho é igual a jovem. O que é grande é a sabedoria. É claro que sou o mais indicado para ser o chefe. É assim desde pequeno, porque foi Deus que decidiu. O meu pai estudou 19 escrituras sagradas, estudou muito mais do que eu, mas não faz mal. A sabedoria é grande”.

As pessoas entram e saem. Nunca há mais de sete a assistir. São todas velhas à excepção da menina que cozinha pedras. A leitura segue com uma eloquência tremida, indiferente aos movimentos na sala e ao burburinho que sugere que se passa ali também para cumprimentar uns vizinhos e saber de outros. Entra um cão que procura festas e, debaixo da ombreira da porta, permanece um homem muito velho, sentado, que completa, muito antes do líder, todas as frases da leitura.

No centro da casa há uma grande cruz de madeira, em frente à qual se ajoelha quem chega.

Durante várias gerações a religião foi a escola dos Rabelados. Só o líder sabia ler e escrever. Ensinava-se aos pequenos “a oração, as doutrinas, a fé, a virtude, a justiça, as boas acções e o bom caminho”.

Para além da Bíblia, tinham como base o Lunário Perpétuo e um Tratado de Medicina. Hoje, afirma Moisés, “as coisas estão diferentes. Já todos os Rabeladinhos vão à escola. As pessoas têm mais ambições, saem daqui para trabalhar fora e não apenas na agricultura. Umas voltam, constituem família, outras ficam por lá”.

quarta-feira, novembro 18, 2009

A boina da vitória, sempre

A porta de metal encardido e vidro baço uivou quando a empurrei, a medo. Antes de o cheiro a bafio se me colar ao corpo, o pequeno sino por cima da porta anunciou-me.

Lá dentro era o avesso de lá de fora, um cemitério de móveis para venda. Lá fora, do direito do avesso, era um vale de estradas que ora são pó de terra ora piscinas de lama.

Estamos na Almada que não cabe nas fotografias para mostrar. Estamos numa loja ampla, abafada e bolorenta, que há 40 anos espera que alguém entre para comprar móveis.

Ao lado da mulher, Alves Carvalho, proprietário do espaço, sobrancelhas espessas e revoltas, camisa de flanela grossa aos quadrados, ostenta em cada palavra 60 anos de fibra.

“Aqui somos uns zeros à parte. Não somos nada, nada. É um salve-se-quem-puder”, cuspiu rancorosamente entre os espaçados dentes.

“Isto depois do 25 de Abril – coisa linda, linda – foi uma invasão de gatunagem e os bufos – aqueles da PIDE, a menina não se lembra, que não é do seu tempo – ficaram, só mudaram de lado”, continuou, sem perguntas, só uma pressa de metralhadora na boca enrugada.

Alves Carvalho acha que “o país está podre que fede” e que, “se não fosse a CEE, estávamos afundados em merda”.

“Isto começou tudo na Universidade de Coimbra, onde aprendiam a ser ladrões”, afiançou, para logo depois garantir que trabalhou “sempre no duro para ser honesto”: “Nunca quis estudar para malandro”, garantiu.

Enquanto falava, Alves Carvalho dava aos ombros um balanço de varina fadista. E nisto a cabeça seguia a dança, com uma boina de fazenda no topo.

“Nunca fui Salazarista e até estive preso porque conspirei, mas a forma que ganhou a revolução, o estado em que isto está, eles é só roubar, só roubar e a gente aqui, um cheiro a merda e a gente invisíveis”.


E perdeu-se por ali afora, com as palavras engalfinhadas pela urgência de chamar a pátria à razão.

Percebi, antes de me encaminhar para a saída, que a boina de Alves Carvalho não era tradição, não era à esquerda, não era à direita.

Aquela boina, a última a dançar quando ele falava, era a boina até à vitória da sua revolução, sempre.

sexta-feira, outubro 23, 2009

O bairro que se deita no mar

Este bairro veio plantar-se à beira do mar que banha a Trafaria nos anos 60. Primeiro ergueram-se casas de pescadores, depois, casas de quem vinha procurar uma vida melhor. Todas construídas com o suor de cada família, e sem papeladas. E nisto houve um estender de novelo, comprido e enleado.

O bairro do Segundo Torrão é um retalho de casas amalgamadas em ruas exíguas e labirínticas, repletas de lixo e de pó, onde vivem mais de 300 famílias sem água, sem luz e sem esgotos.


Neste bairro que se plantou à beira do mar que banha a Trafaria foi-se plantando também a droga, o álcool, o desemprego, a criminalidade, as gravidezes de adolescentes, o abuso de menores e a violência doméstica.

Todo este terreno é propriedade privada. Os moradores ouviram já, por diversas vezes, falar do realojamento.

Gisela, pouco mais de 40 anos, mulher de ombros largos, roupa amarrotada e cabelo desgrenhado, branco na raiz, maço de tabaco sempre na mão e pés empoeirados dentro de uns chinelos largos, é tesoureira da associação de moradores.

“Tratam-nos como se fossemos invisíveis”, diz, numa entoação firme, nascida ali, onde vive há duas décadas.

“Não somos merecedores de estar dois e três dias sem luz, de passarmos frio no inverno, de termos que fazer puxadas do chafariz para termos água, de não termos sistema de esgotos, apenas fossas – que muitas vezes rebentam e ficam a céu aberto. Ninguém é. É uma questão de direitos humanos”.

“As estradas fazem poças enormes no inverno, o bairro é labiríntico e a acessibilidade limitadíssima. Há muitas ruas em que não passa um carro de bombeiros. Um incêndio será – e já foi algumas vezes – um filme de terror”, descreve.

Para esta mulher, que é mãe, e para todos os olhos que passem nestas ruas, cruzando-se com dezenas de garotos numa correria desocupada, “não se pode arriscar não manter estas crianças com alguma coisa para fazer”.

Neste sentido, a voz endurece quando fala da autarquia: “Tem destruído mais do que tem construído. Tentámos fazer um pavilhão para reunir as crianças, para instalarmos uns computadores, mas a Câmara não autorizou”.

“É isto com tudo. São derrotistas. Somos invisíveis, invisíveis”, lamenta.

Gisela sabe que terão que ir embora um dia mas não quer que ninguém se esqueça de que todos os dias antes do realojamento são dias de vida dos que aqui estão.

A autarquia garante que “conhece há muito tempo e muito bem os bairros da Trafaria” e considera que “não é razoável que a Câmara faça mais do que aquilo que tem feito”.

“Não existem no Concelho de Almada cidadãos invisíveis ou de segunda categoria”, garante, sublinhando que “há diálogo” e assegurando que “todos os moradores vão ser realojados em conformidade com os tempos em que se vive”.

Num sofá torpe e esburacado, virado para o mar que banha a Trafaria em 2009, está um cão pequeno e tão peludo que é difícil ver-lhe os olhos, tristes e parados. Ali aninhado, debaixo de um sol que lhe dá sono, tem sorte de não conseguir pensar que é estranho que ainda haja gente a ter que viver assim.

terça-feira, outubro 13, 2009

A orquestra depois de Yehudi Menuhin

A escola – que pode ser na Bélgica, na Estónia, França, Alemanha, Hungria, Irlanda, Itália, Holanda, Polónia, Portugal, Espanha, Escócia, Suécia, Suíça ou Brasil – fica na periferia de uma grande cidade, à beira de um bairro social. O pequeno ginásio tem cortinas de pano cru com desenhos feitos, a pincel, por mãos pequenas. Tem o chão verde, com 15 alunos do 2º ano em cima dele. A figura alta, com sotaque, em frente aos pequenos, dá ordens, ao som da música que sai de um rádio. Esta é uma das três pausas que as crianças fazem na rotina da sua semana e na violência do seu bairro: têm aulas de música, de expressão dramática e, hoje, de movimento e dança. A culpa é do MUS-E.

Este programa foi criado e desenvolvido pela Fundação Internacional Yehudi Menuhin, em 1993. Chegou à primeira escola em 1994. Hoje envolve 30 000 crianças, 600 artistas e 400 escolas primárias.

- “O exercício é imaginar. Imaginem que são o meu espelho. Têm que imitar os meus movimentos, tudo, tudo! E seguir a música. Oiçam a música!”, pede o monitor.

Os alunos imitam, e seguem. Estão concentrados na tarefa. O monitor conta que “costumava ter uma postura mais rígida nas aulas”, mas que, com o tempo, se apercebeu de que “quanto mais liberdade criativa dava aos alunos, maior era o seu interesse”.

Num banco corrido, de madeira, ao fundo, a professora da turma assiste à sessão e ajusta pormenores.

- “Aperta os atacadores, para não caíres”, para um. “Não ficas mais confortável sem o casaco?”, para outro. “Fecha a braguilha”, sorri para um terceiro.

O monitor continua, e exemplifica enquanto fala: “Vamos passar muito perto uns dos outros, mas sem tocar. Sempre sem tocar”. Eles aderem, entusiasmados.

- “Agora sentem-se no chão, vamos acalmar, fechem os olhos, vão-se deitando, relaxem”.

As crianças estão sujas e despenteadas, vestidas com roupas que não lhes assentam; algumas – muitas – estão calçadas com sapatos rotos ou pequenos demais.

- “O efeito das sessões não se nota a curto prazo. Ou seja, eles não saem daqui para a aula imediatamente mais calmos. A longo prazo temos notado uma diferença enorme. Aqui eles têm um equilíbrio que lhes falta no bairro”, afirma a professora.

Para o monitor, “estes alunos evoluíram muito na forma como procuram concretizar as tarefas, despertar para novos movimentos”.

A professora sente-os “diferentes na forma como se relacionam, na forma como se olham. Há uns anos todos os movimentos, e mesmo o olhar, tinham agressividade; não conseguiam organizar-se para brincar no recreio sem a presença de um adulto. Agora confiam uns nos outros, estão mais concentrados, sabem estar numa sala de aula e conseguem cumprir regras, conseguem... quer ver?”, perguntou.

A aula terminou. O monitor despede-se e a professora começa a contar até dez em voz alta. “UM, DOIS, TRÊS” – correria e burburinho; “QUATRO, CINCO SEIS” – colocam-se em fila, ainda sem grande rigor, virados para a porta; “DEZ” – em fila indiana, irrepreensível, prontos para sair.

A professora não esconde o orgulho: “Isto seria impensável há três anos. Agora é normal”.

Programa MUS-E: a Arte na escola

O MUS-E traz, desde 1994, as artes para o ambiente escolar e ajuda a que o desenvolvimento das crianças seja harmonioso e sustentável.
Os artistas, que trabalham como monitores, apresentam aos alunos novas formas de pensar, criar e interagir, para promover a integração social e reduzir os níveis de violência, racismo e exclusão social entre os mais novos.

Pedro Saragoça, coordenador do programa MUS-E em Portugal, afirma que este é um projecto realista: “Não trabalhamos para utopias. Não temos a presunção de, com este programa, trazer a paz ao mundo”, diz. “Ficaremos muito felizes se conseguirmos contribuir para que as crianças sejam mais equilibradas, mais tolerantes e menos violentas, e para que estes valores sejam também transmitidos aos bairros onde elas vivem”.

O MUS-E dirige-se sobretudo a escolas inseridas em áreas co-habitadas por culturas diversas, onde existem problemas sociais graves e elevados factores de risco de exclusão. O desafio é aproveitar o potencial artístico das crianças para promover o diálogo entre culturas: a arte é uma ferramenta para alcançar o respeito por si próprio e pelos outros.


Pretende-se também desenvolver a capacidade das crianças para ultrapassarem dificuldades; despertá-las para o prazer da descoberta e do conhecimento, integrando-as nas tradições da sua localidade, para que possam encontrar as suas raízes e, posteriormente, plataformas de diálogo com tradições de outras culturas.

Pedro Saragoça refere que, quando o programa chega a uma escola, “a situação que se encontra é normalmente bastante difícil”: “Há, na maioria das vezes, problemas muito graves por resolver: níveis grandes de agressividade entre as crianças, ausência de regras comportamentais básicas... Mas com o tempo as coisas melhoram”, acrescenta.

“Depois, lentamente, começamos a conseguir fazer-lhes propostas. Elas aprendem a ouvir e começam a demonstrar um interesse crescente. Mas o caminho a percorrer é sempre grande. Quanto mais pequenas forem, menos resistência apresentam, mais fáceis são de entusiasmar”, conclui.

“A vida é uma arte e cada momento devia ser um momento de criação”, Yehudi Menuhin

No início do projecto, Yehudi Menuhin escreveu que “a música, o som de uma voz, ouvir e cantar formam a experiência mais natural, mais comunicativa e mais civilizadora de uma vida.” Por isso, considerava “essencial uma experiência dos sentidos”.

Nesse sentido, os elementos essenciais do MUS-E são a dança e o canto. Não se utilizam instrumentos musicais, à excepção da percussão.

Actualmente, o programa inclui também expressão dramática, mímica, teatro, escrita criativa, técnicas de narração, artes visuais, arte contemporânea, pintura, escultura, criação e construção de instrumentos, multimédia, artes marciais... As escolhas dependem da idade das crianças, dos objectivos dos monitores, das culturas representadas na escola e dos projectos que já existem.
O que guia o programa, afirmou Menuhin, “é a resposta das crianças, a sua alegria em aprenderem a dançar, a cantar, a conviver”.

Uma obra do coração

Yehudi Menuhin não se lembrava de nada na sua vida que tivesse acontecido antes de ter decidido ser músico.
Deu o seu primeiro concerto de violino aos 5 anos; aos 11 já queria conduzir uma orquestra. Ao ouvi-lo tocar, Albert Einstein proferiu uma frase que havia de tornar-se célebre: “Agora sei que existe um Deus no Céu”. Humphrey Burton, biógrafo, recorda que “ele nunca foi apenas um músico; desde muito cedo quis fazer outras coisas, para que a sua música pudesse trabalhar para a humanidade”.

Em 1991 criou a Fundação a que deu o seu nome, para “reagir contra o fenómeno da redução, quer da dignidade, do valor, da originalidade, ou da criatividade dos seres humanos”, através da arte.

Yehudi Menuhin deu voz aos que não a tinham. Morreu em 1999, aos 82 anos, mas não partiu: deixou a música do seu violino nos ouvidos de todos e o mundo a conversar.

sexta-feira, outubro 09, 2009

Pode ser que os feios amem menos bem

O bairro é feio na medida dos outros todos. Está sujo, desarranjado, é um quadro torto numa parede bolorenta, de tijolo mole e tinta estalada. A família vive remediada, como remediadas vivem as vizinhas, a esticar orçamentos enquanto tentam que haja um patrão a aceitar feios ao serviço.

A casa, de portas logo abertas, cheira ao cão que foi fechado na varanda e que pede para entrar com as patas na porta de alumínio.

A família Viegas Prazeres vive em habitação social no Bairro de Santo António, no Laranjeiro, e está, garante, a ser “perseguida e mal tratada” pelos serviços de protecção de menores, “que ameaçam levar os três filhos” do casal.

Num lar empanturrado de mobílias e arrumado com o jeito português do cá-se-vai-andando, José Viegas, 46 anos, e Vera Prazeres, 29, vivem com Maria da Guia, 10 anos, Ana Lúcia, 8, e Marco António, 6, todos “fruto de um lindo amor”.

Os meninos estudam e os adultos estão desempregados. Os cinco vivem, “com 600 euros por mês, há quase quatro anos”.

“Luxos às crianças não dou porque não posso, somos um casal pobre. Mas estes meninos não passam mal e amor e carinho não lhes faltam”,
garante José, cabelo farto e grisalho, mãos grossas, encardidas e boca sem dentes.

Na cozinha, por onde entra um fio de uma luz dourada e tépida, de fim de tarde, percebe-se carinho. Vera, baixa e magra, cabelo longo e claro e grandes olhos azuis, divide-se entre esta conversa e as solicitações dos três garotos.

Há molduras dos meninos em cada espaço livre, e colados com híman ao frigorífico estão os horários escolares.

José e Vera dizem-se “com medo de perder as crianças”, depois “das ameaças que a polícia e a protecção de menores têm feito”.

Garantem que “a polícia vai para onde vão” e contam episódios em que “a assistente social foi brusca e agressiva” e em que “a polícia não teve respeito nenhum” por eles.

“O agente disse para nos calarmos, para assinarmos aquele papel, que nem lemos, ou levavam os miúdos. Fomos completamente enxovalhados em frente a toda a gente e esse não foi o único episódio”, contam.

José afirma que não sabe “em que se baseiam para terem este comportamento”: O casal recolheu, “para se defender”, 59 assinaturas de moradores do bairro que “garantem” que eles “tratam bem as crianças”.

A ideia é “entregar o papel a um juiz, ou assim”: “Queremos defender-nos mas não sabemos como ou a quem havemos de nos dirigir, estamos com medo”, afirmam.

Perto do prédio onde vive a família, miúdos que brincam na rua, e que têm idades próximas às dos filhos de José e Vera, confirmam que “se vê muitas vezes a polícia ali à porta”.

“Pode ser porque eles às vezes vão procurar sucata com o pai ou porque às vezes estão sozinhos. Mas nunca estão sozinhos muito tempo”, arrisca um.

Assunção dos Anjos, septuagenária alentejana, vizinha da família, garante que “os meninos passam sempre para um beijinho, são educados, andam lavadinhos e não faltam à aulas nem andam na vadiagem”.

Para ela, essas denúncias são mais a fama que a rama. São maledicência de quem não tem que fazer”.

No minimercado daquela rua as opiniões também são consensuais: “fartura em casa não há, é verdade, as crianças brincam na rua, é verdade. Quando brincam na rua sujam-se, é verdade. Mas isso não é diferente em família nenhuma”, defende a proprietária.

“Os miúdos estão bem tratados, estão gorduchos, os pais andam com eles para todo o lado. Tanto, que lhe chamamos o Zé peido e os seus peidinhos”, graceja.

A Comissão de Protecção de Menores de Almada entendeu não se pronunciar sobre a questão para “salvaguardar a privacidade da família”. Já a PSP, rejeitando as acusações, garantiu que “a Polícia de Segurança Pública respeita a lei e os cidadãos”, esclarecendo que “a actuação das autoridades foi feita conforme a solicitação das entidades públicas com competência na matéria”.

O certo é que “a polícia continua a parar-lhes à porta” e a assistente social não os “larga da mão”. Pode muito bem ser porque os feios amam menos bem.

quarta-feira, setembro 30, 2009

A lâmpada do sorriso do coração

A hortelã transpira dentro do chá preto oferecido, que arrefece em cima do balcão de vidro, enquanto duas fatias da melhor e mais barata pizza de Berlim aquecem no forno da pizzaria de Aladino.

Atrás do balcão está ele, um egípcio sorridente, corpulento e charmoso, com nome de génio e loja de rei. Aladino tem pele morena, cabelo e olhos escuros, e uma pincelada de barba no queixo, ao comprido. Há-de estar a meio caminho entre os 30 e os 40 anos.

Casou com uma portuguesa por quem se apaixonou num instante. Têm dois filhos que lhe rasgam os olhos de brilho a cada palavra.

Aladino fala um português rápido, desenrascado e levemente tosco nos cantos. Diz “mulhera”, por exemplo, mas com tanto amor que quase não se nota.


Aladino é muçulmano. Aqui não se vende álcool nem carne de porco. Mas diz-se tantas vezes “graças a Deus” quantos os episódios que Aladino partilha sobre a sua vida com quem vem de novo, “porque teve sorte, porque é muito feliz”.

Na pequena loja que abriu na Gneisenaustrasse, perto da estação de Mehringdam, no centro de Berlim, passa o mundo, sempre a abarrotar: dos turistas aos loucos, dos sozinhos aos sem-abrigo.

“Para comer aqui não é preciso dinheiro”, garante Aladino. “Chegam, escolhem e levam, mesmo que não paguem”.

É assim com os sem-abrigo, que escolhem a pizza e, enquanto ela aquece, fogem da montra de vidro que é janela e que dá para a rua para não afugentarem a clientela.

É assim com o grupo que entra em festa e deixa abraços, só para dizer que Aladino
tem bom coração.

É assim com o judeu, que aparece todas as noites mas nunca gastou ali um cêntimo.

É assim com o empresário alemão loiro, lindo e gritante que chega montado numa imponente bicicleta holandesa para dizer olá e contar como foram as férias em Portugal.

É assim com o louco do andar de cima, que tem jeitos de ainda viver na Berlim oriental de muro erguido e se senta, imóvel, na mesa debaixo da árvore: cabelo escorrido, à tijela, bigode e óculos de armação quadrada de metal reforçada no nariz.


E são cada vez mais porque quem vem tem que voltar. Pode não vir pela fome ou porque se janta muito bem por três euros, mas porque tem saudades do sorriso e das brincadeiras de Aladino.

“O que falta à Alemanha é o amor da família. Eles têm tudo: dinheiro, médico, comida, espaços verdes, bons carros, bons transportes, uma grande história... mas não se ligam à família. São pessoas vazias e azedas. Acho que é por isso que vêm aqui”, sorri Aladino.

A hortelã está agora no fundo da caneca transparente, já sem chá. As pizzas estão quentes e é hora de jantar. Ficamos na mesa debaixo da árvore, em frente à montra da pizzaria.

Lá dentro, enquanto uns saem e outros entram, Aladino continua, irremediavelmente às voltas com a lâmpada de onde tira tantos sorrisos.

quarta-feira, setembro 16, 2009

Fuck (Parade) por ali abaixo


Fotografias [Vítor Martinho]

A KöpenickerStrasse – a caminho da famosa Fernsehturm Berlin, a torre da televisão – vem descendo gorda de gente, que desfila enquadrada por uma atenta, embora desinteressada, escolta policial.

A música chega ainda antes da multidão, como chegam as garrafas de cerveja vazias que caem de algumas mãos da amálgama dançante que aí vem, arrumada entre carrinhas de caixa aberta e olhada de cima para baixo por uma densa nuvem de fumo de tabaco e marijuana.

O som cresce e a parada ganha cada vez mais forma.

- “É a Fuck Parade”, responde um guarda a olhos curiosos que o abordam.

Hexac Hexe é uma berlinense loira alta e magra, de olhos claros. Os trapos que lhe cobrem o corpo tampam as vergonhas e sobram para pouco mais. Está num difícil jogo de equilíbrio entre o sms que envia, o charro que enrola, a cerveja que bebe e o cigarro que, em simultâneo, fuma.

Explica, olhando de soslaio por imperativos logísticos, que “a música é brutal, o tempo está maravilhoso e é tudo grátis”.

A multidão de cabeças pendulares cobre agora toda a rua e Dörg Melchow, actor de cinema, explica, por detrás de uns enormes e espelhados óculos de sol, que “a Fuck Parade surge para contestar a Love Parade, que não é mais do que uma puta vendida e comercial”.

Dörg arrisca que haverá três mil pessoas no desfile.

É uma marcha em que as pessoas aproveitam para dizer ‘fuck’ às coisas que as irritam. Este ano protestamos contra o projecto de uma media city, que quer colonizar a opinião pública; contra a video-vigilância, que não pára de atropelar a nossa vida privada; e contra a vontade de alguns interesses imobiliários, que querem entupir Berlim de prédios e tirar-nos aqueles maravilhosos espaços à beira rio”, enumera.

A marcha das marchas todas – onde cabem também os gritos dos neo-nazis – vem dividida por carrinhas, que assinalam cada luta, munidas de colunas que rugem estrondosamente metal, techo, trance, que se digladiam e confundem.

“Mas é também a cena do ‘fuck’ tudo, ‘fuck, fuck, fuck’!”, termina.

Por ali abaixo, é ‘fuck’ que dizem todos: da matrafona que dança com um cabo comprido que tem na ponta uma câmara de videovigilância de cartão, até à gorda sado-masoquista que acorrenta o namorado, sem esquecer o mulato enorme e musculado que esvoaça em tronco nu, de calças de licra verde-alface e saia de tule rosa.

‘Fuck’ tudo, ‘fuck, fuck, fuck’ – à bruta ou com meiguice – ‘fuck’ tudo por ali abaixo.

terça-feira, setembro 01, 2009

Os visitantes do luto

[A primeira fotografia é de Vítor Martinho]

O visitante decide o caminho: escolhe por onde entra e por onde sai; decide o tempo que se demora e o ritmo a que sente o frio que se esconde sob um céu quente e aberto de Agosto.

A luz fica densa entre as 2 711 estelas de arrependimento e betão dispostas em grelha no rectângulo que fazem a Cora-Berliner-Straße, a Ebertstraße, a Behrenstraße e a Hannah-Arendt- Straße, perto das portas de Bradenburgo, Berlim.

O peso da vergonha com que se ergueu, entre 2003 e 2005, o monumento de Peter Eisenman à memória dos judeus da Europa assassinados contrasta com os gritos dos dois miúdos que se desafiam para um salto mais alto e mais longo do que o anterior entre cada estela.

Contrasta com o olhar sexy que a loira alta prende na câmara com que o namorado a fotografa. Contrasta com a ligeireza com que todos se sentam a descansar, de pés pendurados e mapas abertos.

Os caminhos que se cruzam rápida e permanentemente dentro de toda a grelha de cimento são, imagino quando quase choco com outros visitantes, ilustração da surpresa com que outros se cruzaram com a morte.

Ao fundo, um segurança alto, forte e loiro pede delicadamente às crianças que não subam para as estelas. “É um monumento de luto”, explica.

O centro de informação, situado a sudeste do monumento, esconde-se na terra para mostrar as caras que o luto cobre.

“Aconteceu, por isso pode acontecer outra vez, e é essencialmente isto que temos que dizer”, Primo Levi 1).

Lá dentro, o ambiente obedece ao luto do memorial. Tenso, com luz fraca.

As palavras de Tela, escritas num postal agora ampliado no chão e iluminado, foram uma das primeiras confirmações do extermínio em massa nas câmaras de gás.

Escreveu-as de Kutno, a 27 de Janeiro de 1942. O postal foi publicado em Fevereiro desse ano, no jornal comunista clandestino Morgnfrajast.

«Já vos escrevi num cartão o destino que nos persegue. Estão a levar-nos para Chelmno e a gasear-nos».

O silêncio é cortado pelos soluços que se ouvem entre cada carta ampliada e iluminada no chão.

As estimativas apontam para que tenham sido mortos cerca de 6 milhões de Judeus.

E o espaço é curto: «Dizer os nomes de todas as vítimas do Holocausto e contar todas as suas histórias de vida levaria cerca de seis anos, seis meses e 27 dias».


1) Primo Levi nasceu em Turim, em 1919. Licenciou-se em Química, participu na Resistência contra a ocupação Nazi. Foi preso e internado no campo de concentração de Auschwitz. Escreveu, entre outras obras, “Se isto é um homem (1947)” com base na experiência que viveu. Suicidou-se em 1987.

domingo, agosto 30, 2009

O museu e os apalpões

[fotografias: Vítor Martinho]

Era baixa, roliça e vaidosa.

Diz quem se lembra desses tempos em que a menina tinha quatro anos, que pintava irrepreensivelmente os lábios sem se ver ao espelho.

Contam também que virava do avesso o guarda-vestidos da avó para se fantasiar de crescida com aprumo, e que corria, inabalável, em cima dos saltos altos de uns sapatos vários pares de números acima do seu.

E era assim, boneca vestida com alinho, que encetava cada jornada: a casa da avó guardava muitas estórias e tesouros. Era preciso dar conta de tudo, não deixar escapar nada. Abrir todas as portas e gavetas, olhar para dentro de todos os armários, ver debaixo das camas e dos sofás.

Deutsche Demokratische Republik museum, Karl-Liebknecht-Straße, Berlim

Aviso(tradução livre): “Este é um museu que se apalpa. Tudo aquilo em que não pode tocar está protegido. O resto é para sentir. Aproveite e divirta-se”.

E
ntrei na casa de uma avó que viveu em Berlim oriental, na República Democrática Alemã, criada em 1945, depois da Segunda Grande Guerra e da ocupação da Alemanha pelas tropas aliadas.

A avó deixa a menina – menos menina, menos roliça e vestida com menos alinho – entrar e garantir que não ficam estórias por apalpar.

A casa explica o regime desde o canto em que se segue a vida dos outros até à sala de estar onde se assiste a programas televisivos emitidos durante o século passado na Alemanha de Leste.

A casa da avó chega ao pormenor da almofada muito de esquerda e do telefone que responde. A casa da avó tem as paredes forradas com papel. A casa desta avó é soviética até ao último tijolo.

A história conta-se na máquina de lavar roupa, nos armários da cozinha ou nos da sala e segue pelo corredor onde estão os avós dos vestidos da avó da menina do início da estória e fotografias dos penteados das senhoras que se passearam com eles.

Na casa da avó de Leste também se aprende sobre políticas de habitação, profissões, medicamentos, futebol e música rock.

O museu da da República Democrática Alemã é uma avó faladora. Fez-me menina de novo. Não pintei os lábios nem calçava saltos altos, mas não deixei nenhuma gaveta por abrir.

quarta-feira, agosto 26, 2009

Vida de rua

Artur é polaco. Chegou a Berlim “porque sim (por que não?)” há três meses e vive na rua desde então.

Tem 24 anos e as mãos tão peganhentas que faz lembrar um garoto de cinco.

“A cerveja é a minha vida e a rua é a minha vida e a música punk é a minha vida”, diz.

Tem gestos descoordenados, de menino que não sabe que tamanho tem um seu corpo. Ri-se à gargalhada ininterruptamente.

A sua vida cabe numa mochila com um saco-cama, cerveja e cigarros e num telemóvel com leitor de mp3. O resto é o mundo.
“Tenho amigos. Vivo com inúmeros e faço outros, os que passam”, sorri.

Na Alexanderplatz, em Berlim, Artur recebe os turistas de sorriso largo e cerveja em riste.

Aos que retribuem, arrisca pedir uma cerveja. O gesto vale o convite para se sentar na sua cama, o convívio com os seus amigos, pastilhas elásticas, cigarros, marijuana e mais cerveja.

Na verdade, não importa o que se trouxe. Importa que se chegou. O que houver divide-se pelos que estão.

terça-feira, agosto 25, 2009

O judeu da Gneisenaustrasse

Jérome é judeu, anárquico, feminista e vendedor de marijuana. Tem cerca de três dentes e vive em Berlim há 40 anos.

Pára todas as noites na pizaria mais famosa da Gneisenaustrasse, perto da estação de Mehringdam, no centro de Berlim.

É alto, entroncado e veste de ganga. Tem uns olhos muito azuis dentro de uns óculos de metal redondos, presos num enorme, magro e curvado nariz.

Não é um homem bonito. Tem cerca de três dentes e está “entre os 64 e os 65 anos”. Aperta o seu inglês num forte sotaque francês.

Enquanto aproveita a companhia de quem janta na humilde mesa da esplanada, mantém a cabeça e as palavras na conversa mas os olhos e a carteira ao fundo da rua, na porta do bar de muitos dos seus clientes habituais.

Jérome é judeu, anárquico, feminista e vendedor de marijuana. Vive em Berlim há 40 anos. Antes disso viveu pelo mundo.

Hoje acordou “para cima”. Ontem acordara no extremo oposto: “É Deus que faz as coisas assim. Temos que estar um dia mal para podermos dar valor a um dia em que estamos bem”.

“Desci para aproveitar a vida, sobretudo por ser Verão. É preciso aproveitar o Verão. Quando é Inverno em Berlim preferes sempre ir para o inferno”.

Não dá um euro a ganhar a ninguém, salvo o euro da cerveja que traz hoje na mão. Nunca compra comida mas aceita toda a que lhe oferecerem, como a piza que mete agora vagarosamente à boca.

“Acho que a atitude dos machistas é puro medo de que as mulheres sejam mais inteligentes”, diz, olhos esbugalhados e mãos a orquestrarem um discurso inflamado.

“Mas nunca casei. Tive pretendentes. Várias mulheres quiseram casar comigo, mas eu disse sempre não. Decidi não casar. Não sou desse tipo”.


“Com as mulheres deves aprender. Deves ouvir tudo o que te dizem, porque são sempre mais inteligentes do que os homens”, defende.

Quanto à erva, diz apenas que só vende “da boa” e “sempre a conhecidos”. “Não vendo droga a loucos. A marijuana bate mal”, garante.

Jérome resmunga ainda sobre os clientes que perde para os casamentos: “Elas pedem-lhes para pararem de fumar erva, e eles obedecem. Não têm escolha e eu é que perco!”, lamenta, de nariz no chão.

Num instante ergue a cabeça e atalha: “Bom, eu não falo de mulheres nem de dinheiro. Podemos falar antes sobre revoluções, sobre todas as revoluções do mundo”.

segunda-feira, agosto 17, 2009

A lady bardajona

Mimi tinha o nome de um Portugal salazarento que não lhe servia. Nunca o dizia a ninguém. Às vezes em surdina, aos mais chegados, Clotilde.

E era uma lady. Matrafona mas cintilante, com cabelo de macho mas de tornozelo fino e de unha irrepreensivelmente pintada.

Mimi era também bardajona e obscena. Nunca usava cuecas porque, advogava, “era uma caloreira desgraçada”, mesmo no Inverno.

Tinha um casamento destroçado e um marido a condizer. “Um-banana-que-p’r’áli-andava”, pai de duas filhas que ela fizera “praticamente sozinha” e tão dócil que “nem se atrevia a comentar“ a roda viva de adultério que era a vida de Mimi.

Mimi era, já se percebeu, uma mulher de fala rija e franca.
E de gestos conformes.

Era cozinheira num restaurante de bairro e fazia pénis com todos os alimentos que lhe passavam pela mão, se a travessa fosse para servir a homens. Fez corar largas dezenas deles.

Mimi fazia-os presas. Devorava-os. Ela mandava sempre. Não houve nenhum homem a resistir-lhe.

Resistiu-lhe Portugal, que lhe chamava nomes feios por ser assim das palavras e dos gestos.

Foi para a “América da liberdade”, porque ali pode dizer palavrões barbudos e ser uma lady ao mesmo tempo. E sobretudo, claro, porque “há muito mais homem para ver”.

quarta-feira, agosto 05, 2009

Sines com a família do mundo na barriga

O Festival Músicas do Mundo (FMM) de Sines atrai anualmente largos milhares de visitantes de todo o mundo. Grande parte deles viaja de caravana, que estaciona onde há espaço. Sentem-se, garantem, “uma enorme família unida pela música do mundo”.

Na linha da costa junto ao porto de recreio de Sines, há dezenas de caravanas ilegalmente estacionadas num parque de terra batida. De portas abertas, com gente a entrar e a sair, convidam à conversa e à festa.

[fotografia de Vítor Martinho]
Lá dentro, e a toda a volta, há festivaleiros de diferentes países, entre o sol de fim de tarde, comida, bebida e música tocada de improviso, a fazer tempo até à hora de início dos concertos umas ruas acima, no histórico castelo.

Richard Sneelling, holandês de 55 anos, pela quinta vez em Sines para assistir ao FMM, vem para “ouvir artistas de muita qualidade que fazem uma música ecléctica, genuína, plural e demarcada dos sistemas comerciais, num ambiente descontraído e amigável”.

“Há sempre grandes surpresas na escolha dos grupos e parece que cada vez é melhor”, diz.


Tineke e Don Mun Smith, também holandeses e fãs do festival, “fazem da caravana casa durante esta semana” e garantem que “ninguém faz caso de que o local onde estacionaram não seja exactamente autorizado”: “faz parte de ser português ser descontraído, também adoramos isso”, sorriem.

“E é um festival que democratiza a música: é barato, todos podem chegar-lhe”, acrescentam.

Da mesa a que se sentam os três holandeses saíram há pouco Sónia e Nuno Marques e Rui Simões, “acabados de assentar arraiais, vindos de Carnaxide”, arredores de Lisboa.

“Ouvimos o Tineke tocar acordeão e não resistimos. Agarrei no djambé e juntei-me a ele. É isto o festival, esta fusão, esta energia positiva, este sentimento de comunidade”, explica Nuno.

[fotografia de Vítor Martinho]

A mesa volta a encher-se com os bhaji de cebola que John Vendi, inglês, vem vender por um euro.

“É um petisco tradicional do Paquistão. A minha mulher é paquistanesa, cozinha-os e eu vendo-os. Somos conhecidos em muitos festivais”, garante. A mesa confirma o talento apregoado.

“A música é a primeira ligação entre as pessoas, o resto vamos fazendo a cada minuto, com os vizinhos das outras caravanas, com as pessoas na rua ou no mercado”, considera John.
[fotografia de Vítor Martinho]
Entre a caravana destes três holandeses e a dos seus vizinhos ingleses está uma corda de roupa “da qual se serve quem tiver roupa molhada, porque ela não é propriedade exclusiva de ninguém”.

A família que decide, para esta entrevista, chamar-se Gonzalez tem oito elementos – fora os cães, que ninguém arrisca contar –, dos dois aos 60 anos e está instalada num atrelado que foi inicialmente concebido para transportar cavalos.

O ancião da família reconhece que se apercebeu de que não era “muito legal estacionar aqui”, mas “presumiu que, sendo o espaço perto da polícia, toda a família estaria segura”.

[fotografia de Vítor Martinho]
“Somos muito lavadinhos e repartimos com todos a droga que trouxemos. Não haverá azar”, garante.

“É maravilhoso o espírito de comunidade. Há pouco alguém deu almoço ao meu neto e veio agradecer-me por ter podido brincar com ele um par de horas”, conta. “Sinto-me em casa”.

O inglês dos pés sujos, cuja língua tropeça no álcool e enrola a fala, conta, sentado num sofá vermelho roto e encardido, que “houve um ano em que a polícia veio pedir para que se desmontassem as tendas mas quando percebeu o trabalho que ia dar desistiu e juntou-se à festa”.

Com o somar das horas chegam mais festivaleiros e o cenário multiplica-se pela extensão do parque de terra batida que está cada vez mais cheio.

Em cima, no Castelo, Sines, com cada vez mais mundo na barriga, não deixa a música parar.