terça-feira, julho 28, 2009

As letras na sala da Santa


“A lei é sempre escrita pelas maiorias que malfazem”, lê-se na parede suja de uns antigos armazéns à beira-mar da cidade que Dom Vasco da Gama, ali ao fundo, imponente e redondo, guarda do alto.

O desenho das letras, a negro, é uniforme e, desconfiar-se-á avante nesta história, “obra de tintas de malandros”.

A mulher que aí vem, e que me chega primeiro ao nariz do que aos olhos, traz – depois de todo aquele perfume de que não pode despir-se – um xaile brilhante aos ombros e um semblante indagador envolvido numa inflexível cabeleira loira.

“Estou farta de olhar para aquelas letras”, diz a boca enorme e vermelha, com mais batom que lábios. “Não estavam ali ontem, sei bem que não estavam. Nunca ali estiveram”, assevera e ajeita o xaile, fadista-conspiradora.

“Isto não são coisas que se escrevam aqui. Isto é o pátio da Santa das Salas”,
indigna-se, simultaneamente temerosa. “É como se fosse a sala de visitas dela, o sítio onde recebe gente”.

“Assusta-me muito. Estou farta de pensar e acho que a frase é mentira. Nem a percebo bem, mas deve ser mentira. Deve ser tinta de malandros”.


“A lei é sempre escrita pelas maiorias que malfazem”, repete.

“Não percebo. O que isto é mesmo é um grande mistério. E não gosto. A santa a ver isto, não há-de gostar, não há-de gostar”.

Tem medo e confessa-mo em surdina.

Assegura-me que as pessoas são bem capazes de não ter dado por nada porque ali a gente é pouco atenta e não gosta de pensar nas coisas da vida, do mundo. Mas a Santa, essa, há-de dar, se é que já não deu”.

“A igreja foi construída no início do século XVI por iniciativa de Vasco da Gama, que, como as gentes de Sines, tinha grande devoção a Santa Maria das Salas”, explica.

“É uma Santa de respeito, de idade, que está aqui há séculos”, diz apressada, enquanto vira costas e se afasta para esquadrinhar em terreno mais fértil: “Adeuzinho, vou acalmar os nervos à Santa”.

sábado, julho 18, 2009

O poeta mercador

À volta, numa tarde de sábado, era tudo futebol mais barulhos e confusões anexas. Na mão dele, todos os dias, era toda a realidade feita poesia.

O homem sem traços tortos de maior, dono de curvas generosas e corriqueiras, é o poeta da região. Verseja a realidade.

- “Como eles fintam a bola eu finto as palavras e faço versos”, explica, enquanto tira notas para ajudar a inspiração.

Na mão dele “tudo dá verso”, afiança. E é tão de confiança que a Junta lhe editou um livro, que ele folheia e lê, salteando versos, “porque um pai ama todos os seus filhos com o coração a transbordar”.

Lê-os com a pressa de um amor tão cheio que não consigo fazê-los assentarem-me no caderno onde é preciso que se desenhe também uma reportagem feita da matéria de que o poeta fará mais obra.

- “Pode confiar, que sou poeta”.

Só ele é que tem olho para a realidade, “que afinal é toda ela só por si mesma um poema”.

- “Tenho tudo neste livro. O Seixal como nunca ninguém o viu, todo em verso. Eu gostava de fazer chegar a minha poesia a jornais maiores, ou ao mundo, porque ela merece”.

Fui deixando de ouvi-lo entre as vozes de outras conversas obrigatórias. Perdi-o de vista entre a confusão do apito final em campo.

Depois da multidão dispersa voltei a conseguir distingui-lo. Já não tinha o livro na mão. Levava debaixo do braço uma caixa de cartão espalmada. Corri para o apanhar.

- “Ainda quer aparecer numa espécie de jornal na Internet?”

- “Não, hoje já vendi os livros todos. Amanhã penso nisso”.

sábado, julho 11, 2009

A lição

O garoto é baixo demais para a sua idade. Tem caracóis loiros e um casaco de ganga, de mangas arregaçadas, que quase lhe toca nos joelhos. Brinca, sozinho, com uma bola de futebol vazia, perto do antigo chafariz da rua Capitão Leitão, em Almada Velha.

“Ó puto, não vens? És o único miúdo aqui em cima, pá. Os Buraka já estão lá em baixo, meu!”

A pequena figura desprende-se da bola e espreita a mãe, ao fundo, a beber café. Não sabe quem são os Buraka mas isso importa pouco. Quer ir. Torce a boca como quem pensa que argumento pode um menino de quatro anos apresentar a um adulto para poder ir mergulhar na multidão fervilhante, umas ruas abaixo.

A birra deste homem que há-de ser entrou nos ouvidos da sua mãe ao mesmo tempo que Angola entrou em Almada para abrir a Quinzena da Juventude 2009.

Antes da birra do menino e umas ruas depois daquela em que ele joga à bola, Almada está em êxtase e num aperto. No Parque Júlio José Ferraz, a noite está quente e cheira a relva pisada. No palco, montado ao centro, está um homem alto, de fato e gravata. A multidão está suspensa, a olhá-lo.

“Vêm de conquistar a Europa, vão conquistar os Estados Unidos e a Austrália, mas o maior concerto vai ser este, em Almada! Almada é Juventude, Almada é a Quinzena. O flow dos Buraka está a rebentarpessoal! ‘bora dançaaaaar!, anuncia António Matos, Vereador da Juventude da Câmara Municipal de Almada.

“Isto é Angola, isto é Almada, isto é Burakaaaa!”, gritam do palco.

A multidão deixa-se arrebatar pelo kuduro e dança em delírio, salvo algumas vergonhas pontuais. Visto de longe, parece que há ondas por cima da relva. Ao perto há braços no ar, um coro irrepreensível e rodas onde se dança ao despique: “Wegue, wegue wegue wegue! A buraka é qui está a cuiare”.

Os mais miúdos, como o do início deste texto, negoceiam com pais aflitos com a bagunça de dança que se agrava. Percebe-se um vá-lámãe-só-mais-um-bocadinho-só-mais-esta-só-mais-esta e vão ficando:

“Pongo Love é qui está bater. Wegue, wegue wegue wegue!”

Perto do palco, ao lado do homem alto, que rimou ao microfone, está uma mulher baixa, de cabelo claro, com sapatos de quem não veio para dançar kuduro mas que se mexe como quem não resiste ao ritmo.

Maria Emília de Sousa, Presidente da Câmara Municipal de Almada, veio ver os Buraka Som Sistema porque gosta e "porque queria perceber se a escolha da banda tinha sido acertada”.

Sorri com os sorrisos dos jovens, orgulha-se da energia com que dançam e conversa com todos.
Beija muitos deles, sempre com aquele jeito de Abril, que é agarrar na cara do outro com as mãos abertas e de sorriso largo.

O público acompanha o ritmo que o palco irradia e as vergonhas pontuais já não existem. Os miúdos já não pedem aos pais que fiquem, porque agora são os pais que não querem ir embora.

Nem é preciso mais perguntar se esta foi uma boa escolha para abrir a Quinzena de 2009.

Os Buraka Som Sistema recriaram o kuduro, fundindo-o com o techno, o drum‘n’bass, o hip hop e a música de dança. “Assumimos directamente a nossa relação com África”, afirma Riot, membro da banda.

“Sentimos que o kuduro tinha uma base rítmica incrível mas que ainda não tinha sido muito explorada, então decidimos que íamos ser nós a mostrar a nossa visão do kuduro, tendo em conta todas as outras músicas que ouvimos”, diz.

Para Kalaf, também membro da banda, “o trabalho dos Buraka é a África pobre, encarada e vivida com audácia”.

“Vocês estão aí, ou quê?”, grita-se do palco. “Vamos fazer a festa nós, Almadaaaa!”

A multidão faz ondas cada vez maiores. As pessoas não andam, dançam.


“Almadaaa! Vocês estão cansados? Vocês estão todos aos saltos? Almaaaaada!”.

Almada está apertada, abraçada, transpirada e, efectivamente, aos saltos. O concerto termina como começou: “Wegue, wegue wegue wegue! A Buraka é qui esta cuiar... Almada é qui está a cuiare… Wegue, wegue wegue wegue!”

“Buraka ‘tá a bazar!” – sai do palco.

Há aplausos fortes e assobios. E há reclamações: Almada queria ser dos Buraka a noite inteira.

Se os Buraka gostaram tanto como Almada? “O importante é que vocês tenham gostado. Isso é que é verdadeiramente importante”, diz Kalaf. “Nós gostámos, mas queremos é saber de vocês”.

Depois da música e da dança, a multidão acalma-se e demora-se nas conversas entre amigos, a aproveitar a noite – que parece de verão – e a sentir o cheiro a relva ainda mais pisada.

O garoto do início deste texto, caracóis loiros e um casaco de ganga, de mangas arregaçadas, que quase lhe toca nos joelhos, está virado para o palco, onde já não está ninguém. Está de mão dada com a sua mãe, que está mais transpirada do que ele.

“Vamos embora?”, pergunta ela.

“Agora podemos ir. Antes da música é que não podíamos, percebes? Não te disse que ia ser fixe? Não gosto nada quando és teimosa!”

Texto publicado na revista P'Almada, online aqui.