sábado, julho 11, 2009

A lição

O garoto é baixo demais para a sua idade. Tem caracóis loiros e um casaco de ganga, de mangas arregaçadas, que quase lhe toca nos joelhos. Brinca, sozinho, com uma bola de futebol vazia, perto do antigo chafariz da rua Capitão Leitão, em Almada Velha.

“Ó puto, não vens? És o único miúdo aqui em cima, pá. Os Buraka já estão lá em baixo, meu!”

A pequena figura desprende-se da bola e espreita a mãe, ao fundo, a beber café. Não sabe quem são os Buraka mas isso importa pouco. Quer ir. Torce a boca como quem pensa que argumento pode um menino de quatro anos apresentar a um adulto para poder ir mergulhar na multidão fervilhante, umas ruas abaixo.

A birra deste homem que há-de ser entrou nos ouvidos da sua mãe ao mesmo tempo que Angola entrou em Almada para abrir a Quinzena da Juventude 2009.

Antes da birra do menino e umas ruas depois daquela em que ele joga à bola, Almada está em êxtase e num aperto. No Parque Júlio José Ferraz, a noite está quente e cheira a relva pisada. No palco, montado ao centro, está um homem alto, de fato e gravata. A multidão está suspensa, a olhá-lo.

“Vêm de conquistar a Europa, vão conquistar os Estados Unidos e a Austrália, mas o maior concerto vai ser este, em Almada! Almada é Juventude, Almada é a Quinzena. O flow dos Buraka está a rebentarpessoal! ‘bora dançaaaaar!, anuncia António Matos, Vereador da Juventude da Câmara Municipal de Almada.

“Isto é Angola, isto é Almada, isto é Burakaaaa!”, gritam do palco.

A multidão deixa-se arrebatar pelo kuduro e dança em delírio, salvo algumas vergonhas pontuais. Visto de longe, parece que há ondas por cima da relva. Ao perto há braços no ar, um coro irrepreensível e rodas onde se dança ao despique: “Wegue, wegue wegue wegue! A buraka é qui está a cuiare”.

Os mais miúdos, como o do início deste texto, negoceiam com pais aflitos com a bagunça de dança que se agrava. Percebe-se um vá-lámãe-só-mais-um-bocadinho-só-mais-esta-só-mais-esta e vão ficando:

“Pongo Love é qui está bater. Wegue, wegue wegue wegue!”

Perto do palco, ao lado do homem alto, que rimou ao microfone, está uma mulher baixa, de cabelo claro, com sapatos de quem não veio para dançar kuduro mas que se mexe como quem não resiste ao ritmo.

Maria Emília de Sousa, Presidente da Câmara Municipal de Almada, veio ver os Buraka Som Sistema porque gosta e "porque queria perceber se a escolha da banda tinha sido acertada”.

Sorri com os sorrisos dos jovens, orgulha-se da energia com que dançam e conversa com todos.
Beija muitos deles, sempre com aquele jeito de Abril, que é agarrar na cara do outro com as mãos abertas e de sorriso largo.

O público acompanha o ritmo que o palco irradia e as vergonhas pontuais já não existem. Os miúdos já não pedem aos pais que fiquem, porque agora são os pais que não querem ir embora.

Nem é preciso mais perguntar se esta foi uma boa escolha para abrir a Quinzena de 2009.

Os Buraka Som Sistema recriaram o kuduro, fundindo-o com o techno, o drum‘n’bass, o hip hop e a música de dança. “Assumimos directamente a nossa relação com África”, afirma Riot, membro da banda.

“Sentimos que o kuduro tinha uma base rítmica incrível mas que ainda não tinha sido muito explorada, então decidimos que íamos ser nós a mostrar a nossa visão do kuduro, tendo em conta todas as outras músicas que ouvimos”, diz.

Para Kalaf, também membro da banda, “o trabalho dos Buraka é a África pobre, encarada e vivida com audácia”.

“Vocês estão aí, ou quê?”, grita-se do palco. “Vamos fazer a festa nós, Almadaaaa!”

A multidão faz ondas cada vez maiores. As pessoas não andam, dançam.


“Almadaaa! Vocês estão cansados? Vocês estão todos aos saltos? Almaaaaada!”.

Almada está apertada, abraçada, transpirada e, efectivamente, aos saltos. O concerto termina como começou: “Wegue, wegue wegue wegue! A Buraka é qui esta cuiar... Almada é qui está a cuiare… Wegue, wegue wegue wegue!”

“Buraka ‘tá a bazar!” – sai do palco.

Há aplausos fortes e assobios. E há reclamações: Almada queria ser dos Buraka a noite inteira.

Se os Buraka gostaram tanto como Almada? “O importante é que vocês tenham gostado. Isso é que é verdadeiramente importante”, diz Kalaf. “Nós gostámos, mas queremos é saber de vocês”.

Depois da música e da dança, a multidão acalma-se e demora-se nas conversas entre amigos, a aproveitar a noite – que parece de verão – e a sentir o cheiro a relva ainda mais pisada.

O garoto do início deste texto, caracóis loiros e um casaco de ganga, de mangas arregaçadas, que quase lhe toca nos joelhos, está virado para o palco, onde já não está ninguém. Está de mão dada com a sua mãe, que está mais transpirada do que ele.

“Vamos embora?”, pergunta ela.

“Agora podemos ir. Antes da música é que não podíamos, percebes? Não te disse que ia ser fixe? Não gosto nada quando és teimosa!”

Texto publicado na revista P'Almada, online aqui.

2 comentários:

JPC disse...

acho que nunca tinha lido "perto do antigo chafariz da rua Capitão Leitão"

Cátia disse...

Gostei da ligação que fizeste ao menino dos caracóis...sempre lá os teus escritos!
Beijo meu bem*