sábado, janeiro 31, 2009

O deserto ao fundo da rua


Esta estória, que queria acabar no deserto, começa dentro de um jipe onde está um paquistanês – com as mãos no volante –, uma argentina e um espanhol – com as mãos um no outro –, uma queniana, dois portugueses, um chinês acordado e outro sempre a dormir.
O homem com o volante nas mãos vai descontraído, a manter o estilo que condiz com a capa da caixa de lenços de papel que traz no tablier, cheia de dourados. À esquerda, junto à janela, traz um peluche, para mostrar às miúdas que é um tipo sensível. A cereja do bolo do carácter vem pendurada no retrovisor, onde um sino de plástico, atulhado de pingarelhos, compõe o ramalhete.
A argentina e o espanhol olham-se com um ar tolo de lua-de-mel, e filmam-se, de boca aberta, pasmados com a maravilha-de-fresco que vêem, até ver, um no outro. O chinês acordado, que se senta, vestido de verde, no banco de trás, fala pelo que vai à frente a dormir, no lugar do co-piloto, e pela queniana, que se veste a condizer com ele.
O deserto começa a chegar aos poucos, pelos lados. O chinês acordado tenta dizer zorro em inglês. Tenta de novo. E volta a tentar. Desiste.
É tempo de calibrar os pneus para fazer o carro trepar pelas imensas dunas de areia. O deserto aparece logo depois da curva e, vendo bem a coisa, não é tão deserto assim: há famílias em piqueniques e várias caravanas de safaris. Por sorte, sobra uma duna ou outra.
A música sobe para se sentir melhor a coisa. O rádio apanha quase sempre: este deserto, é uma sorte, fica mesmo ao fundo da rua.
O jipe faz-se às dunas. Começa a saltar, a gingar, e a fugir. As ondas de areia chegam às janelas. Ouvem-se, e percebem-se só pelo tom, asneiras em todas as línguas.
O jipe cai quase de frente, quase rebola, de tão encostado à direita, e tudo grita. O chinês que dormia já acordou e o outro, com o susto, disse zorro melhor do que o espanhol.
O sol vai descendo e é preciso parar para o ver por-se gigante-laranja, enorme-enorme, lá ao fundo, depois das famílias e onde acaba a areia clara e fina.
Com os minutos contados, os guias apressam os turistas para o jantar. Mais dunas, gritos e asneiras até ao acampamento.
A tomar conta da entrada há três camelos ramelosos, cansados e fedorentos à disposição do rabo de qualquer turista, excepto do da senhora redonda que está agora a rebolar-se no chão, ao lado do camelo que não estava para ser urso.
shisha, chá, café, tralhas de levar para casa com ícones do Dubai, indianas a pintar as mãos das meninas, espaço para as máscaras e, logo depois das filas de uma hora, o jantar. O ambiente é animado. Há turistas bêbedos e outros só parvos. Há paquistaneses e indianos com um ar cansado e há o grande espectáculo da noite, quase-quase a rebentar, anunciado pelo rugir insuportável de várias colunas.
A dança do ventre chega ao palco no corpo de uma bailarina de Alhos Verdos ou de Oliveira de Azemeis, que é máscula e praticamente sexy. Tem franja, cabelo comprido e corpo que sobra ao vestido. Com o ritmo tosco que tem no corpo, a odalisca-pinguim vai animando as hostes e convida o público ao palco, para o delírio. A delirar ainda está uma sexagenária francesa, de cabelo curto encaracolado e olhos arregalados. Dança para manter a postura e não pede ajuda; para todos os efeitos está a divertir-se e não está perdida; só já não se lembra em que curva do palco redondo entrou.

Cá fora há palmas entre os restos do jantar, fotografias e a dança dos que têm vergonha das luzes. A música já é só uma chinfrineira disforme.
Chega, com a sobremesa de sopas de pão com mel, um fulano num traje risível, que depois se faz todo luz e dança com um espécie de fatia de pizza gigante por cima da sua cabeça. É psicadélico e quase tradicional.
A multidão não sossega, gosta e pede mais. As colunas a rugir. Mais café e chá. E palmas, e palmas, e vivas e, sem se dar por isso, os guias a empurrarem toda a gente para os carros, que-acabou-a-festa-acabou-a-festa-foi-giro-não-foi?.
No caminho de volta, o chinês do banco da frente dorme como um bebé e o do banco de trás não voltou a conseguir dizer zorro. Arrisco que todos pensam em como foi bom rir até sentir a barriga doer.


Afinal, fomos ao circo. Foi fantástico, mas fiquei com pena pelo deserto; ficava mesmo ali ao fundo da rua...

sexta-feira, janeiro 30, 2009

A Grande Mesquita

É ténue a linha do desenho que se percebe no horizonte, mas indubitável a força da presença com que se assoma. O branco imenso da sua extensão esbate-se na luz fria e nublada do meio da manhã. [Fotografia inicial: Vítor Martinho]

A paz da pintura quebra-se com a proximidade. Como em toda a curva do golfo pérsico, as obras ainda não terminaram: há barulho, muitos trabalhadores, tijolos, cimento e apetrechos mil. E há ainda, não sei hoje, se sempre, hordas de turistas a transpirar cuiosidade e histeria.

A mesquita Zayed Bin Sultan Al Nahyan – ou, pela impronunciabilidade da sua graça, Grande Mesquita – é o mais imponente edifício religioso da história de Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes Unidos (EAU), e uma das poucas abertas a não-muçulmanos.

Os turistas vingam-se e levam-na toda nos cartões de memória. Não há azulejo que não fique no retrato. E merece; posso arriscar que até se faz à fotografia. A Grande Mesquita é vaidosa. Porque é árabe e porque pode. Fez-se – de mármore, ouro, pedras semi-preciosas e cristais – com pedaços do mundo todo – de Itália à Índia, passando por Marrocos, Grécia, Alemanha, China e EAU.
Cabem aqui, ao todo, dizem eles, 40 960 fiéis.

- “ Não há mais chadors – os trajes pretos que cobrem o corpo da maioria das mulheres muçulmanas – nem hijabs – os lenços que cobrem as suas cabeças – lavados. Usaram todos!”
A voz atordoada é de uma filipina a quem delegaram a gestão da banca circular que fornece a roupa que os visitantes – sobretudo as mulheres – têm usar no interior da mesquita.

- “Agora só usados”, acrescenta, enquanto encolhe os ombros e desvia o olhar para um saco de plástico transprente, de onde caem peças negras do avesso, com o uso de quem vai espreitar os dois salões – fotografá-los até ter cãibras nos dedos – e volta.
- “Venham os usados, então!”, guincham duas chinesas. Vale tudo menos deixar alguma coisa por ver.

São centenas a entrar e a sair. Dezenas a parar no meio, para as fotografias. Milhares por dia, a brincar ao carnaval.

Paquistaneses e indianos estão arrumados como de costume: uns garantem a alvura e o brilho espelhado do chão, outros a segurança e o respeito (possível) pela santidade do local.

Na visita, eles vão mais ou menos à larga – “pede-se apenas que não vistam calções” –; elas vão todas embrulhadas.

Os sapatos ficam na linha do corredor que conduz à entrada. O cheiro que sobra – e que sobra, e que sobra – fica na maior carpete persa feita à mão (7 000 metros quadrados), que cobre todo o chão da segunda sala, onde – e já que se põe as letras nas grandezas – está pendurado o maior candeeiro do mundo.

Os visitantes atropelam-se, perguntam, gritam, e voltam a fotografar.

Cinquenta passos atrás da carpete que ainda fede daqui, está o frio da primeira sala, que só recua perto dos vitrais enormes e difíceis de dizer. O espaço faz sorrir por isso, e pela doçura das flores que crescem nas paredes de mármore.

Mais fotografias, poses, fotografias e poses, gritos, perguntas e atropelamentos. Todos fazem tanto para levar tudo que duvido que cheguem a ter tempo para ver alguma coisa.

Entre a multidão deambulante há guias que se distinguem pelas placas que agitam, em bicos de pés, de braços levantados.

- “A hora das orações está relacionada com os movimentos do sol”, explica, num francês amarrotado, uma guia tão anafada quanto coberta. “O calendário muçulmano é diferente do cristão. Contamos o tempo partindo do dia do Profeta. Estamos, por isso, no ano 1430.”

Os guias orientam os rebanhos e dão por findadas as visitas. Depois do meio dia a mesquita é só para quem vem fazer as suas orações.

As últimas poses, as últimas fotos, os últimos gritos de entusiasmo, e a roupa vestida de segundo uso posta fora dos corpos, do avesso. A debandada faz-se ao ritmo do burburinho – burburão, ão – a que as impressões se trocam. Já está.

Pelos vistos, Alá – o Deus dos “fanáticos-extremistas-intolerantes-e-todos-postos-no-mesmo-bolo-e-preconceitos-e-preconceitos...”– é um tipo calmo, que lida bem com a bandalheira. Gostava de ver o que faria a Nossa Senhora – “que é virgem e faz milagres” – com este circo de infiéis montado em Fátima.

[Curiosidade: Muslim Prayer Times]

quinta-feira, janeiro 29, 2009

O Dubai pelas suas caras

Amor vingado

O Creek Side Park diz-se todo pelo nome. É um parque que se estende ao lado do Creek. É preciso acrescentar que o rio – o Creek – lava o Dubai, aqui e ali, e que, à noite, quando se espreita o lençol da cidade velha, as luzes dão-lhe uns ares da cidade do meu coração.

O parque é imenso, verde, arrumado e impecavelmente limpo pelos feios de que já falámos. É um parque temático dentro de um maior que ele, que é o Dubai.

Apetece namorar o Creek Side Park e por ele adentro.

Com o sol pela costas e no fim de uma curva, aproxima-se um árabe a quem não quis perguntar o nome. Conduz um carro que arrumo melhor num campo de golfe, e traz com ele um semblante cerrado.

- Acabaram-se os beijos. Isto é um sítio público!”, apontou o dedo. E seguiu.

Foi a segunda repreensão desta ditadura. Fiquei com o lábio a tremer. Uma rua onde o amor não se pode passear entre uma boca e outra não precisa de existir.

Por ser imenso, o parque tem ainda um teleférico quase barato. Diz que é para ele que o sol se põe, gingão e vaidoso.

Comprámos dois bilhetes. Pela liberdade, pelo amor, e pelo sabor infantil e irresistível de contrariar aquelas sobrancelhas cerradas. Subimos e beijámo-nos como se fosse certo que o sol não ia nascer outra vez.

segunda-feira, janeiro 26, 2009

Em casa no mundo

No chão de terra batida, um garoto de ano e meio faz uma birra demorada, numa luta hercúlea por uma girafa insuflável.
O pai, figura alta e redonda, a quem a energia foi fugindo com a idade, observa-o, impávido.
Ele esperneia, levanta pó e grita. Faizal olha-me e sorri, como quem se desculpa pela barulheira.

- “Deixo-o sempre cansar-se”, diz-me. “Queres um café?”
E fomos.
- “És turista? Eu vivo aqui desde sempre. Era produtor de programas de televisão mas reformei-me. Tenho nove filhos daquela mulher que está ali ao fundo.”

- “E tem outras mulheres?”

- “Não falo sobre essas coisas!”, diz-me com uma gargalhada tapada pela mão a esconder a cara, envergonhada.
A mulher sentada lá ao fundo tem 50 anos, a pele morena e os olhos rasgados. Os seus pais chamaram-lhe Emerine.
Quando veio das Filipinas para o Dubai, converteu-se ao islão para se casar com Faizal e agora chama-se Miriam. Apesar do corpo tapado, é expansiva e tem a boca de ouro sempre aberta, ou a rir ou a falar.
Mexe as mãos com muita pressa.
Conversa comigo enquanto toma conta da família.

- “Rashid, agarra o miúdo!”
O pequeno Hajer não sossega por um instante. E cada brincadeira é mais arrojada do que a anterior. Preparava-se agora para saltar de uma altura que triplicava a sua.

- “Cada cinco minutos sem nada partido são uma conquista”, diz a mãe.

Metade da família veio ver Rashid, de sete anos, actuar. Vai participar numa coreografia de grupo, em que rapazes, vestidos com roupas tradicionais, dançam com kalashnikovs de plástico. Nos dias normais, Rashid passa o tempo a treinar para ser futebolista.

Hajer, o miúdo com pilhas, começou agora a comer terra.

- “Noorah, corre!”, grita Mariana, coordenadora de operações.
Noorah tem 11 anos e tanta timidez que, depois de entregar o miúdo peganhento à mãe, não me conta absolutamente mais nada para além da sua idade. Esconde-se atrás de Fatima, a mais velha deste casamento de Faizal. Tem 24 anos, olhos enormes, e estuda enfermagem.

- “Estou no último ano da faculdade e a arquitectar a minha independência”, pisca-me o olho.

Mariana tem Hajer ao colo e abana-o para o distrair.

- “Odeia estar quieto, mas deixa-nos exaustos. Às vezes tem que ser.”

Volto à Fatima.

- “O que te falta para seres independente? É o teu pai que te prende, a tua religião, os teus amigos, o teu namorado...?”

- “Preciso de terminar o curso e de ir estudar para outro sítio. Nunca viajei. Sou hiper-protegida. Prende-me a preocupação dos meus pais. Mais a da minha mãe, até. Sabes como são as mães... Os meus amigos usam a Internet, estamos sempre perto. E em relação ao Islão, é só um compromisso, não é uma prisão: as suas regras protegem-me, não me limitam. Tenho um véu mas tenho o mundo pela frente.”

Mariana dá ordem a Faizal para que distribua a comida pelas tropas. Enquanto desembrulham os hamburgueres, o miúdo decide assoar-se ao lenço da mãe. Ela larga-o no chão.

- “Noorah, toma conta dele”, delega.

Pede-me os meus contactos em Portugal, porque “nunca se sabe que voltas a vida dá”. Explica-me depois que a hora de orações está a aproximar-se e que têm que ir andando.

- “Foi um prazer ter-te connosco aqui.”

Faizal aproxima-se.

- “Se quiseres ir a nossa casa, terás uma festa à tua espera”, promete.

Despeço-me e agradeço.
Foi bom sentir-me em casa. É bom saber que o mundo me serve para morar, porque está cheio de famílias (quase) como a minha.

sábado, janeiro 24, 2009

O Corão no táxi

Fui a última a entrar no táxi. Ia zonza, enjoada. A shisha tinha-me descido às pernas e voltado à cabeça, para a deixar à roda.

A flutuar nas ideias tinha ainda o luxo disfarçado de tradição do Madinat Jumeirah, um resort que se vende como o mais fascinante do mundo e, pelos brilhos que vi, não deve andar longe da verdade. Ao fundo, noutra ideia nublada, a imponência do Burj Al Arab. 321 metros de altura com o desenho de um barco e o mundo lá dentro.

A porta do táxi bateu como quem diz que o dia estava a terminar. A noite estava quase tão fria como a de Lisboa. Ao volante estava um corpulento, de cabelo farto e grisalho. Tinha uma educação a fugir à regra da falta dela, que se pratica por aqui.

- “Podia ser português. Parece mesmo português. “

- “Sou do Paquistão, senhora.”

Quis saber de política. Ele explicou que é tudo religião.

- “Sou da Liga Muçulmana, embora reconheça o que o Partido Popular do Paquistão fez pelo país. ”
- “Mas não gostava da Benazir Bhutto?”

- “Era uma grande mulher. Filha de um grande homem, também. Chorei muito quando os mataram. Ela era boa mas não podia ser líder. É mulher. Respeito-a como irmã mas não a aceito como líder. Não pode comandar uma nação; o seu lugar é em casa, entre paredes.”

Falava sem tirar os olhos da estrada desarrumada. Percebia-lhe, de perfil, uma cara de traços grossos, como a voz, convicta.

- “Na sua autobiografia, a Benazir cita o profeta Maomé para dizer que "o Paraíso fica debaixo dos pés das nossas mães”, arrisquei.

- “Sim, mas o Corão também diz que "o Paraíso de uma mulher é debaixo dos pés do seu marido”, rematou, intransigente.

E mergulhou – e mergulhou-nos – em episódios do livro sagrado para nos mostrar que só aquele que ama o seu Deus mais do que a si se pode salvar; e que é preciso que cada um cumpra o papel que Deus lhe atribuiu; e que, por isso, cada um no seu canto. E mais, e mais.

Ele abranda à chegada para poder terminar o sermão. Pagamos-lhe mais pelo bom bocado de conversa: não entramos nas mesquitas mas elas vão entrando em nós.

"Moralidade, ordem, segurança e respeito ao Islão"

No Dubai, o Mundo está todo dentro dos hotéis, não vale a pena procurar nada à volta. Goze o corpo com o dinheiro, que a cabeça gozará com o Corão, nunca com a Internet.
Lista dos temas "bloqueados" - que censurados é capaz de ser forte.

segunda-feira, janeiro 19, 2009

Vestir as calças

O Gold Souk é um dos maiores mercados de ouro a retalho do mundo, e eu cheguei na hora de ponta. Tudo transpira pressa.
Passa das sete da tarde e o que era um burburinho deu uma cambalhota e é uma gritaria. O som confirma que é um mercado. Os brilhos confundem a cabeça. O mercado é das vendedoras feias, gordas, aos gritos, e das bagatelas. Não é das senhoras finas, de sacos de compras, não é das lojas a transbordar de ouro.
Há bebidas em tabuleiros, ao colo de vendedores ambulantes, e há homens que correm – ora atrás, ora à frente – de carrinhos de mão: cheios para um lado, vazios para o outro.

Os turistas arrastam-se, com sacos nas mãos, exaustos. E o mercado continua a corrida.
Os árabes vão passando, sempre com um nariz tão inclinado que os olhos, pobrezinhos, nunca conseguem baixar a linha do ombro, e precisam de olhar o mundo de cima, e sempre pelo canto do olho.
Parei os olhos nos olhos que espreitavam de um imenso e imponente tecido preto.

Umas mãos preguiçosas, como o andar em que a vi chegar, nuns chinelos muito sujos, e sentar-se. Na ponta das mãos, que seguram num telemóvel peganhento, a pintura das unhas a perder a cor.
Shaheen Noori é indiana. Nasceu em Bombaim e mudou-se para o Dubai com o marido há oito anos, quando casou. É muçulmana.

Tem 28 anos e duas garotas encardidas e fedorentas.

Com atenção, percebo-lhe o desenho do nariz pequeno, e, porque o vento ajuda, arrisco que tem uma boca conforme e lábios finos.

A curiosidade dos seus olhos prende-se na dos meus.
- “Não usas véu?”
- “Não sou muçulmana”, sorrio.
- “Cristã? Nenhum tipo de religião? Se não consegues decidir-te por nenhuma eu posso ajudar. A religião islâmica é a melhor do mundo. A melhor de todas, a melhor!”

Pedi-lhe razões. Queria ouvi-la desabafar.

Queria que acabasse por me confessar o quão oprimida se sentia; queria ouvi-la lançar pragas ao marido, a quem tem que obedecer; queria que se lamentasse pelo calor que aquele trapo preto interminável lhe faz; o aborrecimento das rezas; as outras mulheres do marido... Queria salvá-la daquele véu e ajudá-la a queimá-lo e a mostrar a cara ao mundo. Eu ia ser essa!

- “A minha roupa é extremamente confortável e versátil: estou bem quando está frio e também estou bem quando está calor. E é uma protecção contra os olhares invasivos dos homens. Tu és mulher, sabes como são insuportáveis...”
Respondeu-me sempre entre gargalhadas, desembaraçada, convicta, senhora de si.
A esconder o sofrimento, pobre-miúda-grande-mulher.

- “E o teu marido, como é para ti?”
- “Perfeito. Eu nem trabalho. Estou em casa. A maioria dos dias tenho quem tome conta das crianças.”
Ela vai acabar por ceder. Vai desabafar comigo, a pobre. E insisti, movida por um heróico espírito de missão.

- “Ele tem mais mulheres?”
- “Mais três. Temos muita sorte. A religião islâmica protege as mulheres; os homens são sempre mais pequenos.”

- “Não estou a perceber. Parece-me muito injusto. Tu toda tapada, só com um marido, e ele a transbordar liberdade, podendo escolher com que mulher vai dormir?”

Senti-a sorrir-me divertidamente por detrás do véu.

- “Tu nunca sentiste vontade de que o teu marido te desse uma folga? Assim está repartido. Vendo bem as coisas, é um descanso. E depois, pensa comigo: numa casa com um homem e quatro – com as pequenas, seis – mulheres, quem manda, efectivamente?”

E o telemóvel tocou. Despediu-se à pressa, enquanto punha ao ombro uma mala preta, brilhante.

- “O meu marido está à minha espera”.

Levantou-se, despida da preguiça com que chegara, e encontrou-se com o dito três lojas à direita daquele banco. Ouvi-a murmurar qualquer coisa enquanto empurrava as duas miúdas na sua direcção. Fez-se outra, altiva e sensual, e entrou na joalharia imediatamente a seguir, pronta para comprar o mundo.

Eu arrumei o bloco e vi as horas. Levantei-me e pus-me a caminho da paragem de autocarro. E fui para casa, fazer jantar para quatro.




sábado, janeiro 17, 2009

A herança posta ao canto

O Dubai não quis assomar-se aos olhos dos que vêm de fora para se afogarem em luxo para lhes mostrar um pedaço de terra fútil. Agarrou nas velharias – a história e a cultura, coisas decrépitas-decrépitas – e juntou tudo numa aldeia fingida, mas com pessoas reais.

A ideia é só dar uma ideia, que as estravagâncias ficaram todas presas nas pontas do céu. A Heritage Village fica a 5 Km do centro do Dubai. É menina que se vê numa hora, mas que se vende toda, até à última bugiganga.

A divisão de tarefas é evidente e costumeira: os emigrantes encarregam-se do trabalho, os imigrantes do lazer.

Imagine-se tudo em tons de castanho, a recriar cinco séculos atrás.

À entrada há casas de pedra – de verão e de inverno –, desenhadas com respeito pelas tendências arquitectónicas dos tempos que se quiseram aqui encaixar.

No palco, posto no centro da aldeia, a puxar a modernice e rodeado de cadeiras, há crianças com vestidos que ofuscam e os guinchos do costume, menos a educação em falta nos modos arábicos.

Nas tendas de paredes e telhados entre a cana e a palha e antes das lojas onde se vende tudo o que ilustre o já repisado costume – dos perfumes aos sapatos de pontas reviradas, sem esquecer os lenços ou as facas de meia-lua – há espécimes de qualidades diversas – digo género, idade e tamanho – para amostra e para interacção.

Comunicamos num misto de inglês mastigado e gestos tolos. Entramos, passamos os olhos, e é feio dizer que não ao café-chá-ou-assim que o ancião serve aos turistas em seis copos pequenos que rodam por todos, depois de mergulhados num alguidar com água. É feio também dizer que não às tâmaras que, por estarem quase mastigadas e guardadas num baú de metal, não passam pelo estreito de ninguém, porque ninguém tem, sequer, coragem de lhes chegar a mão: põe-se o obséquio no bolso e segue-se viagem, a sorrir e a acenar.



A visita termina com o sol a descer e com os gritos dos garotos a descerem com ele. À volta de tudo põe-se um vento frio, que nos empurra para um abrigo onde estão três homens – um miúdo, um muito velho e outro no meio – , à volta de uma fogueira. Insistem nas fotografias:
- “Agora ela”, ordena o velho, em árabe, ao do meio, que traduz.

- “Agora tu”, continua. “Ela é tua mulher?”

- “Sim. Minha namorada. Minha mulher.”

Ouvimos murmurar e sentimos gestos de discussão. O velho intransigente, o miúdo a dissimular a conversa e o do meio aflito.

- “Mas têm filhos?”

- “Filhos não. Mas é minha mulher. Namorada-mulher.”
E eu, de olhos muito abertos, à espera de perceber.

Mais murmúrios e gestos e gestos e vergonhas. Vim-me embora puxada por um braço, com a curiosidade a puxar-me pelo outro. Não se recusa um negócio sem, pelo menos, ouvir a proposta.

terça-feira, janeiro 13, 2009

Prólogo, Bom dia, Dubai! ou a questão essencial da coisa

Chegou quando isto era tudo só areia. Ajudou a erguer alguns dos edifícios que por todo o lado ofuscam e esmagam: pelo brilho, pelo luxo, e pela grandeza desmedida.

Debaixo dos seus pés, uma faixa pedonal de uma ponte sobre o mar, com uma marina entupida de iates, à direita. À sua volta é tudo limpo, arrumado e ostensivo. E de todas as portas para dentro, o Dubai cheira a novo. Cá fora tem o eco compreensível de 25% das gruas de todo o mundo e mais meio mundo a pôr extravagâncias de pé.
Abu Jafar Molid Salch nasceu no Bangladesh, tem 43 anos e é engenheiro civil. Caminha ao lado do seu irmão, 15 anos mais novo, e interpela-me, entre a muita vergonha e o desculpe-me-a-ousadia: “Menina, desculpe. Peço desculpa, mas será que pode tirar-nos uma fotografia? Vim visitar o meu irmão e queria uma recordação deste dia. Importa-se?”

A fotografia custou-lhe todas as perguntas que eu tinha na cabeça depois do primeiro passeio sozinha.

Os árabes são muito preguiçosos: dormem e pavoneiam-se. O Governo enche-os de subsídios. É sustentável porque eles são menos de 20% da população do Dubai”, explica-me.

Trabalhou no Dubai durante 18 anos e mudou-se há dois para Abu Dahbi, a 150 quilómetros daqui.

Os árabes não nos tratam exactamente como pessoas”, lamenta.

“Com os imigrantes, a conversa é muito diferente: dizem-me que não preciso de mais dinheiro porque sou do Bangladesh. Os ordenados são muito injustos. Eu ganho 5 000 dirames (1 000 euros) a trabalhar como engenheiro, oito horas por dia, com uma folga semanal; nenhum árabe – e apenas por ser árabe – ganha menos de 20 000 dirames (4 000 euros).”

Molid Shahidul Islam, seu irmão, é empregado de limpeza num hotel ali perto. Ganha 600 dirames (120 euros) por mês e manda metade para a família.

Dormem em instalações da responsabilidade das empresas para as quais trabalham, mas, como é regra no mundo, longe das zonas de brilhos.
Também aqui o centro é só dos cabelos arranjados, dos saltos altos e dos carrões. Os feios – vindos da Índia, Paquistão, Sri Lanka, Nepal e Filipinas – ficam de uniforme, com uma vassoura numa mão e uma pá na outra ou por aí, a saber de que precisam os bonitos.
A moral da estória – e da história – é que a moral se compra. O Governo tem, invariavelmente, do seu lado – para além do dinheiro – o chavão do quem-está-mal-que-se-mude. No seu país estariam – ninguém pode dizer que não – pior, muito pior.