domingo, agosto 30, 2009

O museu e os apalpões

[fotografias: Vítor Martinho]

Era baixa, roliça e vaidosa.

Diz quem se lembra desses tempos em que a menina tinha quatro anos, que pintava irrepreensivelmente os lábios sem se ver ao espelho.

Contam também que virava do avesso o guarda-vestidos da avó para se fantasiar de crescida com aprumo, e que corria, inabalável, em cima dos saltos altos de uns sapatos vários pares de números acima do seu.

E era assim, boneca vestida com alinho, que encetava cada jornada: a casa da avó guardava muitas estórias e tesouros. Era preciso dar conta de tudo, não deixar escapar nada. Abrir todas as portas e gavetas, olhar para dentro de todos os armários, ver debaixo das camas e dos sofás.

Deutsche Demokratische Republik museum, Karl-Liebknecht-Straße, Berlim

Aviso(tradução livre): “Este é um museu que se apalpa. Tudo aquilo em que não pode tocar está protegido. O resto é para sentir. Aproveite e divirta-se”.

E
ntrei na casa de uma avó que viveu em Berlim oriental, na República Democrática Alemã, criada em 1945, depois da Segunda Grande Guerra e da ocupação da Alemanha pelas tropas aliadas.

A avó deixa a menina – menos menina, menos roliça e vestida com menos alinho – entrar e garantir que não ficam estórias por apalpar.

A casa explica o regime desde o canto em que se segue a vida dos outros até à sala de estar onde se assiste a programas televisivos emitidos durante o século passado na Alemanha de Leste.

A casa da avó chega ao pormenor da almofada muito de esquerda e do telefone que responde. A casa da avó tem as paredes forradas com papel. A casa desta avó é soviética até ao último tijolo.

A história conta-se na máquina de lavar roupa, nos armários da cozinha ou nos da sala e segue pelo corredor onde estão os avós dos vestidos da avó da menina do início da estória e fotografias dos penteados das senhoras que se passearam com eles.

Na casa da avó de Leste também se aprende sobre políticas de habitação, profissões, medicamentos, futebol e música rock.

O museu da da República Democrática Alemã é uma avó faladora. Fez-me menina de novo. Não pintei os lábios nem calçava saltos altos, mas não deixei nenhuma gaveta por abrir.

quarta-feira, agosto 26, 2009

Vida de rua

Artur é polaco. Chegou a Berlim “porque sim (por que não?)” há três meses e vive na rua desde então.

Tem 24 anos e as mãos tão peganhentas que faz lembrar um garoto de cinco.

“A cerveja é a minha vida e a rua é a minha vida e a música punk é a minha vida”, diz.

Tem gestos descoordenados, de menino que não sabe que tamanho tem um seu corpo. Ri-se à gargalhada ininterruptamente.

A sua vida cabe numa mochila com um saco-cama, cerveja e cigarros e num telemóvel com leitor de mp3. O resto é o mundo.
“Tenho amigos. Vivo com inúmeros e faço outros, os que passam”, sorri.

Na Alexanderplatz, em Berlim, Artur recebe os turistas de sorriso largo e cerveja em riste.

Aos que retribuem, arrisca pedir uma cerveja. O gesto vale o convite para se sentar na sua cama, o convívio com os seus amigos, pastilhas elásticas, cigarros, marijuana e mais cerveja.

Na verdade, não importa o que se trouxe. Importa que se chegou. O que houver divide-se pelos que estão.

terça-feira, agosto 25, 2009

O judeu da Gneisenaustrasse

Jérome é judeu, anárquico, feminista e vendedor de marijuana. Tem cerca de três dentes e vive em Berlim há 40 anos.

Pára todas as noites na pizaria mais famosa da Gneisenaustrasse, perto da estação de Mehringdam, no centro de Berlim.

É alto, entroncado e veste de ganga. Tem uns olhos muito azuis dentro de uns óculos de metal redondos, presos num enorme, magro e curvado nariz.

Não é um homem bonito. Tem cerca de três dentes e está “entre os 64 e os 65 anos”. Aperta o seu inglês num forte sotaque francês.

Enquanto aproveita a companhia de quem janta na humilde mesa da esplanada, mantém a cabeça e as palavras na conversa mas os olhos e a carteira ao fundo da rua, na porta do bar de muitos dos seus clientes habituais.

Jérome é judeu, anárquico, feminista e vendedor de marijuana. Vive em Berlim há 40 anos. Antes disso viveu pelo mundo.

Hoje acordou “para cima”. Ontem acordara no extremo oposto: “É Deus que faz as coisas assim. Temos que estar um dia mal para podermos dar valor a um dia em que estamos bem”.

“Desci para aproveitar a vida, sobretudo por ser Verão. É preciso aproveitar o Verão. Quando é Inverno em Berlim preferes sempre ir para o inferno”.

Não dá um euro a ganhar a ninguém, salvo o euro da cerveja que traz hoje na mão. Nunca compra comida mas aceita toda a que lhe oferecerem, como a piza que mete agora vagarosamente à boca.

“Acho que a atitude dos machistas é puro medo de que as mulheres sejam mais inteligentes”, diz, olhos esbugalhados e mãos a orquestrarem um discurso inflamado.

“Mas nunca casei. Tive pretendentes. Várias mulheres quiseram casar comigo, mas eu disse sempre não. Decidi não casar. Não sou desse tipo”.


“Com as mulheres deves aprender. Deves ouvir tudo o que te dizem, porque são sempre mais inteligentes do que os homens”, defende.

Quanto à erva, diz apenas que só vende “da boa” e “sempre a conhecidos”. “Não vendo droga a loucos. A marijuana bate mal”, garante.

Jérome resmunga ainda sobre os clientes que perde para os casamentos: “Elas pedem-lhes para pararem de fumar erva, e eles obedecem. Não têm escolha e eu é que perco!”, lamenta, de nariz no chão.

Num instante ergue a cabeça e atalha: “Bom, eu não falo de mulheres nem de dinheiro. Podemos falar antes sobre revoluções, sobre todas as revoluções do mundo”.

segunda-feira, agosto 17, 2009

A lady bardajona

Mimi tinha o nome de um Portugal salazarento que não lhe servia. Nunca o dizia a ninguém. Às vezes em surdina, aos mais chegados, Clotilde.

E era uma lady. Matrafona mas cintilante, com cabelo de macho mas de tornozelo fino e de unha irrepreensivelmente pintada.

Mimi era também bardajona e obscena. Nunca usava cuecas porque, advogava, “era uma caloreira desgraçada”, mesmo no Inverno.

Tinha um casamento destroçado e um marido a condizer. “Um-banana-que-p’r’áli-andava”, pai de duas filhas que ela fizera “praticamente sozinha” e tão dócil que “nem se atrevia a comentar“ a roda viva de adultério que era a vida de Mimi.

Mimi era, já se percebeu, uma mulher de fala rija e franca.
E de gestos conformes.

Era cozinheira num restaurante de bairro e fazia pénis com todos os alimentos que lhe passavam pela mão, se a travessa fosse para servir a homens. Fez corar largas dezenas deles.

Mimi fazia-os presas. Devorava-os. Ela mandava sempre. Não houve nenhum homem a resistir-lhe.

Resistiu-lhe Portugal, que lhe chamava nomes feios por ser assim das palavras e dos gestos.

Foi para a “América da liberdade”, porque ali pode dizer palavrões barbudos e ser uma lady ao mesmo tempo. E sobretudo, claro, porque “há muito mais homem para ver”.

quarta-feira, agosto 05, 2009

Sines com a família do mundo na barriga

O Festival Músicas do Mundo (FMM) de Sines atrai anualmente largos milhares de visitantes de todo o mundo. Grande parte deles viaja de caravana, que estaciona onde há espaço. Sentem-se, garantem, “uma enorme família unida pela música do mundo”.

Na linha da costa junto ao porto de recreio de Sines, há dezenas de caravanas ilegalmente estacionadas num parque de terra batida. De portas abertas, com gente a entrar e a sair, convidam à conversa e à festa.

[fotografia de Vítor Martinho]
Lá dentro, e a toda a volta, há festivaleiros de diferentes países, entre o sol de fim de tarde, comida, bebida e música tocada de improviso, a fazer tempo até à hora de início dos concertos umas ruas acima, no histórico castelo.

Richard Sneelling, holandês de 55 anos, pela quinta vez em Sines para assistir ao FMM, vem para “ouvir artistas de muita qualidade que fazem uma música ecléctica, genuína, plural e demarcada dos sistemas comerciais, num ambiente descontraído e amigável”.

“Há sempre grandes surpresas na escolha dos grupos e parece que cada vez é melhor”, diz.


Tineke e Don Mun Smith, também holandeses e fãs do festival, “fazem da caravana casa durante esta semana” e garantem que “ninguém faz caso de que o local onde estacionaram não seja exactamente autorizado”: “faz parte de ser português ser descontraído, também adoramos isso”, sorriem.

“E é um festival que democratiza a música: é barato, todos podem chegar-lhe”, acrescentam.

Da mesa a que se sentam os três holandeses saíram há pouco Sónia e Nuno Marques e Rui Simões, “acabados de assentar arraiais, vindos de Carnaxide”, arredores de Lisboa.

“Ouvimos o Tineke tocar acordeão e não resistimos. Agarrei no djambé e juntei-me a ele. É isto o festival, esta fusão, esta energia positiva, este sentimento de comunidade”, explica Nuno.

[fotografia de Vítor Martinho]

A mesa volta a encher-se com os bhaji de cebola que John Vendi, inglês, vem vender por um euro.

“É um petisco tradicional do Paquistão. A minha mulher é paquistanesa, cozinha-os e eu vendo-os. Somos conhecidos em muitos festivais”, garante. A mesa confirma o talento apregoado.

“A música é a primeira ligação entre as pessoas, o resto vamos fazendo a cada minuto, com os vizinhos das outras caravanas, com as pessoas na rua ou no mercado”, considera John.
[fotografia de Vítor Martinho]
Entre a caravana destes três holandeses e a dos seus vizinhos ingleses está uma corda de roupa “da qual se serve quem tiver roupa molhada, porque ela não é propriedade exclusiva de ninguém”.

A família que decide, para esta entrevista, chamar-se Gonzalez tem oito elementos – fora os cães, que ninguém arrisca contar –, dos dois aos 60 anos e está instalada num atrelado que foi inicialmente concebido para transportar cavalos.

O ancião da família reconhece que se apercebeu de que não era “muito legal estacionar aqui”, mas “presumiu que, sendo o espaço perto da polícia, toda a família estaria segura”.

[fotografia de Vítor Martinho]
“Somos muito lavadinhos e repartimos com todos a droga que trouxemos. Não haverá azar”, garante.

“É maravilhoso o espírito de comunidade. Há pouco alguém deu almoço ao meu neto e veio agradecer-me por ter podido brincar com ele um par de horas”, conta. “Sinto-me em casa”.

O inglês dos pés sujos, cuja língua tropeça no álcool e enrola a fala, conta, sentado num sofá vermelho roto e encardido, que “houve um ano em que a polícia veio pedir para que se desmontassem as tendas mas quando percebeu o trabalho que ia dar desistiu e juntou-se à festa”.

Com o somar das horas chegam mais festivaleiros e o cenário multiplica-se pela extensão do parque de terra batida que está cada vez mais cheio.

Em cima, no Castelo, Sines, com cada vez mais mundo na barriga, não deixa a música parar.