sexta-feira, março 12, 2010

Um bar como qualquer outro (ou a revolução dentro dos olhos)

“Este é um bar como qualquer outro em Bilbau”. Há cerveja, vinho, tapas, chá, cigarros. Há um balcão peganhento e bancos altos que o aconchegam.

“É um bar como qualquer outro”. Tirando os tons da revolução a sair das colunas, “é um bar como qualquer outro”.

Tirando as fotografias dos presos por presumível ligação à ETA ou apologia ao terrorismo, “é um bar como qualquer outro”.

Tirando os mealheiros onde se guarda dinheiro para as famílias dos detidos, é exactamente “como qualquer outro em Bilbau”.

Na verdade, não fosse a força dos argumentos daqueles olhos, passava bem despercebido.


Os políticos olham apenas pelo seu cu. Não podemos eleger aqueles em quem acreditamos porque os partidos são sucessivamente ilegalizados. Não acredito que os bascos venham a ser independentes apenas pela luta política”.

Os argumentos saem dos olhos de um corpo esguio, que os vinca com uns braços enérgicos, delicados mas peremptórios. A voz responde por um nome que inventou e tem 24 anos.

Vivemos sob uma ditadura encoberta, as palavras ainda não servem de nada. Vivemos na democracia que interessa a Madrid”.

Arremessa argumentos. Encolhe os ombros. Estica os femininos braços obstinados que lhe vincam as ideias. Tem fogo nos olhos. Porque é tudo muito óbvio, porque só não vê quem não quer.

“Em todas as lutas pela independência, desde a Irlanda até Cuba, houve um braço armado. Aqui não poderá ser diferente. A ETA vai desaparecer quando deixar de ser necessária, quando as vias políticas puderem ser utilizadas. Agora ainda não”.

A revolução, esta do fogo dos olhos dela, deve fazer-se nas ruas e não tem explicações a dar.

“Isto é um conflito antigo e há vítimas dos dois lados. Ninguém tem que explicar nada a ninguém: há mortos em atentados mas também há muita gente que foi torturada, gente que morreu na cadeia, familiares de presos que morreram em acidentes de carro por terem que se deslocar mais de 300 quilómetros para os visitarem. É um conflito armado, há vítimas”.

Fala das mortes pelo independentismo com desembaraço e aridez. Pontua a indiferença com os ombros que já tinha encolhido uns parágrafos antes deste. Morrer é parte inevitável do caminho até à liberdade, a mulher que não há-de tardar.

“Cada um luta por aquilo defende: seja a essência das festas populares, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião e de manifestação, a garantia de direitos dos presos políticos. Qualquer coisa. E a revolução é inevitável, mais tarde ou mais cedo”.

Acaba o cigarro e põe a mala ao ombro. Sai da mesa para a rua com a mesma pressa determinada com que acendeu as palavras da sua revolução.

No bar, ainda a música, a cerveja, o vinho, as tapas, chá e cigarros. Ainda o balcão peganhento, aconchegado por bancos altos.

Antes de passar a porta, o corpo esguio e os mesmos braços obstinados sublinham: “É um bar como qualquer outro. Apenas com um mínimo de consciência social”.

quarta-feira, março 03, 2010

A alma e o cu na bandeira basca


Em cima da mesa onde esteve um jantar tradicional basco estão agora pousadas duas mãos que a terra enrudeceu. Entre os dedos grossos, gretados, encardidos, está sempre um cigarro.

Este homem tem mais de 50 anos. Nasceu numa rua “ali ao fundo”, no centro histórico de Hernani, baluarte nacionalista basco com 20 mil habitantes, perto de San Sebastien, – Donostia em euskadi, língua basca – na província de Guipuzcoa.

Estes olhos azuis com rugas tingidas de sol foram parte da luta pela independência que Madrid estanca sem ceder. Agora apenas olham, atentos, as brincadeiras da sua filha e o recorte verde das alfaces que as mãos pesadas plantam e colhem.

“A luta política armada é absurda. Os etarras são os primeiros a não compreender a liberdade. Estás num bar, dizes uma coisa que não lhes interessa, que os desagrada, levas um tiro no cachaço”, defende, gestos teatrais, exagerados; a arma imaginária na sua nuca, e a onomatopeia – pááá, pááá, o som da bala – muito repetida.

Não foi à manifestação que ao cair da noite gelou as ruas do centro histórico com uivos tensos de revolta, frases de ordem e punhos em riste, exigindo a libertação dos presos políticos da terra.

“Estás num bar, dizes uma coisa que não lhes interessa, que os desagrada, levas um tiro no cachaço”, relembra, no espaço de minutos. E a arma imaginária de novo na sua nuca, a mesma onomatopeia – pááá, pááá, o som da bala – a ecoar.

“Há uma manifestação por cada preso. Não me parece que valha a pena ir. Sou nacionalista mas a política não me interessa absolutamente nada”.

A sua ideia está apenas posta naqueles cabelos loiros e naquele recorte verde, reitera. É agricultor. A luta é todos os dias, na horta, para poder comer e beber. O nacionalismo independentista, diz, tem todos os argumentos e merece todo o seu respeito.

Conta com a sua alma e, na verdade, com parte do seu corpo.
“Acredito na independência do meu país. Não somos França nem Espanha, somos bascos. Mas se estou no meio da rua, se me dá vontade, se não tenho outra opção, se cago, se não tenho mais nada, se está uma bandeira à mão – a minha bandeira – agarro-a e limpo o cu com ela”.