Era uma noite das que adormecem o nariz. Almada estava agasalhada, mas havia de despir-se dali a pouco. Era noite de rock. Ele não tinha o nariz gelado, nem precisava de se agasalhar. Foi o primeiro a entrar na sala, e o verdadeiro espectáculo da noite.
- “Booora!”
A voz era grossa e vinha de um homem baixo, de ombros largos, vestido de castanho. A sair-lhe das mangas curtas tinha um vigor tonificado, que é músculos, a bem dizer, e que eu havia de perceber à frente serem fruto das palmas obstinadas e não do trabalho transpirado num ginásio.
Com os pés no chão, ele rodava sobre o seu tronco, numa denúncia clara do que estava para vir. Entram agora as primeiras palmas: enérgicas, robustas, que não fazem clap-clap, como as outras, mas pum-pum, de virilidade.
Não sossega e já tem o público na mão. Cospe um assobio, faz festas no cabelo da mulher, sentada a seu lado, e beija-a.
A sala vai enchendo.
- “Vamos embooora!”
E volta às ditas palmas: pum-pum! E o público responde puxa por ele. No palco não está ninguém.
Faz um X com os braços para a câmara, aplaude-se, exibe-se. Está ansioso e tem a audiência eufórica, a gargalhar.
Chega a voz lasciva que nunca tem cara e que pede que se desliguem os telemóveis. Apresenta os Xutos e Pontapés e sai como entrou. Ele está de pé, a aplaudi-los, eles de pé também, para ele.
“Já estou farto de descobrir tantas portas por abrir. Está tudo tão cheio, tão cheio...”
Vê-se que o corpo lhe fica largo. Está histérico, perdeu a ordem dos movimentos. Abana assertivamente a cabeça. Mexe os braços, mãos em movimento-pistola, bate palmas, pum-pum. A arfar, a arfar.
E aplaude de pé. A plateia aplaude-o.
“Dá-lhe com força, Tim!”
Pum-pum-pum-pum!
“N´Améeeeeerica!”, obedece o Tim.
Mãos abaixo e acima, soldadinho de chumbo. Bate mais palmas, pum-pum-pum, ao ritmo da música, e canta.
“E eu vou ter que sair, e eu vou ter que partir! N’Américaaaa!”
E ele puxa ritmo à balada. Bate uma palma e encosta-se na cadeira, balança e transpira amor. Fecha os olhos com força. Faz cara de quem sente uma coisa tão boa que não se diz. As luzes sobem e são dele, como ainda é o público, que não lhe tira os olhos de cima.
“O frio aperta na manhã submersa, entre a neblina, com o sol a nascer”.
Acende um isqueiro. Regula a chama para a intensidade do som e acompanha o ritmo com um subtil estalar de dedo.
“Vai ficar tudo bem, isso eu sei! Quando o sol se juntar ao mar!”
- “Dá-lhe com aaaalma!”
“Quero-te taaaaaaantoooo! Quero-te taaaaantoooooo!””
O amor desabrocha na sala. Nele desabrocha um movimento pistola-balada-que-é-como-quem-diz-que-é-na-mesma-a-pistola-mas-de-mansinho. Abraça o amigo, sentado à sua esquerda, e diz-lhe coisas perto do ouvido.
“Às vezes aqui faz frio!”
Toca num piano que não há e desta vez o amor é para a mulher, que aperta, com força, nos braços. Volta à dança e até faz beicinho.
“O que foi não volta a ser, mesmo que muito se queira”
Movimento pop-chique- cheerleader, braços em cruz, e ritmo na anca.
“Adeus às praias cheias de gente; e um beijo p`ra quem fica”.
Jogo de ombro, headbang. Movimento pistola. Abana a cabeça e contagia a namorada. Aplaude os solos de pé. Insiste. Sabe bem que tocam para ele.
“E depois, morreram as vacas e ficaram os bois”.
Quando os Xutos se calaram, a plateia gritou por mais, até que voltassem. Mas garanto que não era sede de música. Era vontade de vê-lo dançar outra vez.