terça-feira, março 31, 2009

O homem que era um palco

Era uma noite das que adormecem o nariz. Almada estava agasalhada, mas havia de despir-se dali a pouco. Era noite de rock. Ele não tinha o nariz gelado, nem precisava de se agasalhar. Foi o primeiro a entrar na sala, e o verdadeiro espectáculo da noite.

- “Booora!”

A voz era grossa e vinha de um homem baixo, de ombros largos, vestido de castanho. A sair-lhe das mangas curtas tinha um vigor tonificado, que é músculos, a bem dizer, e que eu havia de perceber à frente serem fruto das palmas obstinadas e não do trabalho transpirado num ginásio.

Com os pés no chão, ele rodava sobre o seu tronco, numa denúncia clara do que estava para vir. Entram agora as primeiras palmas: enérgicas, robustas, que não fazem clap-clap, como as outras, mas pum-pum, de virilidade.

Não sossega e já tem o público na mão. Cospe um assobio, faz festas no cabelo da mulher, sentada a seu lado, e beija-a.

A sala vai enchendo.

- “Vamos embooora!”

E volta às ditas palmas: pum-pum! E o público responde puxa por ele. No palco não está ninguém.

Faz um X com os braços para a câmara, aplaude-se, exibe-se. Está ansioso e tem a audiência eufórica, a gargalhar.

Chega a voz lasciva que nunca tem cara e que pede que se desliguem os telemóveis. Apresenta os Xutos e Pontapés e sai como entrou. Ele está de pé, a aplaudi-los, eles de pé também, para ele.

“Já estou farto de descobrir tantas portas por abrir. Está tudo tão cheio, tão cheio...”

Vê-se que o corpo lhe fica largo. Está histérico, perdeu a ordem dos movimentos. Abana assertivamente a cabeça. Mexe os braços, mãos em movimento-pistola, bate palmas, pum-pum. A arfar, a arfar.

E aplaude de pé. A plateia aplaude-o.

“Dá-lhe com força, Tim!”

Pum-pum-pum-pum!

“N´Améeeeeerica!”, obedece o Tim.

Mãos abaixo e acima, soldadinho de chumbo. Bate mais palmas, pum-pum-pum, ao ritmo da música, e canta.

“E eu vou ter que sair, e eu vou ter que partir! N’Américaaaa!”

E ele puxa ritmo à balada. Bate uma palma e encosta-se na cadeira, balança e transpira amor. Fecha os olhos com força. Faz cara de quem sente uma coisa tão boa que não se diz. As luzes sobem e são dele, como ainda é o público, que não lhe tira os olhos de cima.

“O frio aperta na manhã submersa, entre a neblina, com o sol a nascer”.

Acende um isqueiro. Regula a chama para a intensidade do som e acompanha o ritmo com um subtil estalar de dedo.

“Vai ficar tudo bem, isso eu sei! Quando o sol se juntar ao mar!”

- “Dá-lhe com aaaalma!”

“Quero-te taaaaaaantoooo! Quero-te taaaaantoooooo!””

O amor desabrocha na sala. Nele desabrocha um movimento pistola-balada-que-é-como-quem-diz-que-é-na-mesma-a-pistola-mas-de-mansinho. Abraça o amigo, sentado à sua esquerda, e diz-lhe coisas perto do ouvido.

“Às vezes aqui faz frio!”

Toca num piano que não há e desta vez o amor é para a mulher, que aperta, com força, nos braços. Volta à dança e até faz beicinho.

“O que foi não volta a ser, mesmo que muito se queira”

Movimento pop-chique- cheerleader, braços em cruz, e ritmo na anca.

“Adeus às praias cheias de gente; e um beijo p`ra quem fica”.

Jogo de ombro, headbang. Movimento pistola. Abana a cabeça e contagia a namorada. Aplaude os solos de pé. Insiste. Sabe bem que tocam para ele.

“E depois, morreram as vacas e ficaram os bois”.

Quando os Xutos se calaram, a plateia gritou por mais, até que voltassem. Mas garanto que não era sede de música. Era vontade de vê-lo dançar outra vez.

sábado, março 28, 2009

Os cães, a garganta e os sapos


"Nós, pobres, devíamos alargar a garganta, não para falar, mas para melhor engolir sapos".

Zedmundo. Mia Couto in O Fio das Missangas

Aqui não chega correio. Não há água. Não há luz. Há lixo no chão e barracas a enquadrá-lo. Cheira muito mal. Há hortas secas e miúdos sujos e descalços, a levantarem pó do chão, e os pais deles, de sorriso já fugido, como o seu emprego.

Estamos em 2009, na Costa da Caparica, em Almada, Portugal, Europa.

Há sete anos que a água só chega aos alguidares do bairro clandestino das Terras da Costa depois de quase dois quilómetros à cabeça, desde o centro da vila. Vivem aqui 300 pessoas, quase todas cabo-verdianas.

As cabeças viram-se porque alguém veio para ouvir. Ao fundo, de passagem, uma mulher magra, vestida de preto, geme: “Vivemos como cães! Vivemos como cães! É assim que vivemos aqui. Somos cães para eles!”

Angélica diz-me o mesmo. Tem 71 anos e os olhos nublados de cataratas. Tem o cabelo amarrotado para o lado onde deitou a cabeça. É à sua casa, que comprou “com umas coisas legalizadas”, que vêm ter todas as cartas que chegam ao bairro, embora ela não saiba ler.

O bloco branco está envolto num novelo de fios. É daqui que alguns vizinhos levam luz. É daqui que roubam a televisão por cabo: “E roubam tanto que já nem consigo ver televisão, de tão fraco que está o sinal”.

- “Já só quero ir, quero ir-me embora. Não vou voltar a arranjar esta casa. Está tudo a cair! Se não tapar a brecha da porta acordo com ratos ou cobras em casa. Isto é vida? Já me prometeram realojamento vezes sem conta, nem sei dizer”.

A casa não tem água nem esgotos. Angélica tem “só meio coração, ou o coração a funcionar a meio gás”, foi operada há pouco tempo.

- “Pago aos miúdos para me trazerem água. Não posso fazer esforços. Também é uma maneira que tenho de os ajudar”, encolhe os ombros.

O bairro pôs-se aqui, virado para o mar mas sem ver as ondas, há 30 anos. Ouve-se crioulo. Há-de haver cachupa, se-a-menina-desculpe-se-a-senhora-quiser. Há lenços nas cabeças das mulheres e vergonha a sobrar dos corpos de todos.

- “Temos vergonha. E é uma vergonha! Já imaginou, um estudante a ir buscar água à praça? Nelson tem 20 anos, está a tirar um curso tecnológico de reparação e instalação de computadores. Tem um sorriso bonito, franco. Chamam-lhe doutor. É irónico e mordaz.

- “Tirando isso corre tudo bem. Quase não faz diferença que tarefas simples como tomar banho ou lavar a loiça dêem três vezes mais trabalho do que o normal. E, claro, não tem importância nenhuma que tenha recebido um computador que não posso usar, porque não tenho luz.

Durval Carvalho tem 34 e as bocas dos moradores do bairro postas na sua.

- "Não estamos a exigir água canalizada em casa, estamos apenas a pedir algum respeito. Não me parece que seja assim tão difícil".

Depois de a boca de incêndio onde iam buscar água ter sido cortada, houve quem tentasse abastecer-se no cemitério, que fica mais perto do que o chafariz do centro da vila.

- “Fomos expulsos, como cães. Como cães! Expulsaram-nos com medo de que os mortos morram de sede!"

domingo, março 22, 2009

A máquina de lavar

«Josyane de Bagnolet nasceu de subsídios e de um feriado em que a manhã se espreguiçava, feliz, ao som de “Je t’aime, tu m’aimes”. (...) Vieram depois mais dez irmãos, trazendo como recompensa aos seus pais a máquina de lavar, o frigorífico, a televisão, o carro... »

Christiane Rochefort, Les Petits Enfants du siècle

Estava a sentir os buracos da estrada metidos no corpo pelo balanço do autocarro sujo, cheio e indiferente às janelas abertas: irremediavelmente fétido. Estava tudo nas minhas costas.

Ela tinha uma voz grossa, como as palavras grosseiras e barristas que disparava, como quem ataca, à força de se defender.

À volta, depois da porta do autocarro, a mesma mulher tinha a parte de Oeiras onde o sol não bronzeia mas faz suar. Daqui não se vê a praia nem as pessoas bonitas, com óculos de sol espelhados e panorâmicos, como diz que dá estilo. Aqui há guetos de betão e os feios arrumados neles.

Imagino-a a segurar na barriga redonda com as duas mãos, enquanto a oiço a fazer contas.

- “Quando ele nascer compro a máquina de lavar roupa. A assistente social disse que o subsídio era 70 contos”.

Ao lado dela uma voz mais fina, também de mulher, a concordar. E ela a voltar à carga.

- “Fico sem dinheiro nenhum mas não lavo mais roupa à mão. E como vou começar a receber aquele tanto a mais ao fim do mês, dá para safar. O miúdo também há-de usar a máquina, acho que não tem mal nenhum. E dá-me jeito”.

- “Não tem mal nenhum, e dá-me jeito, e eu não engravidei de propósito, não foi pelo dinheiro, mas pronto, dá-me jeito, vou comprar a máquina, custa muito lavar roupa à mão, claro que me dá jeito mais aquele ao final do mês, e também parei com a pílula, mas não era para engravidar, não era pelo dinheiro”, repetia, com a voz a vir do queixo, colado ao peito, para que os olhos pudessem estar no chão, até ficar sem fôlego.

Senti movimento no banco de trás e a lengalenga começou a vir de cima para se afastar depois, em direcção à porta, e sair daquele assunto.

- “O miúdo vai me atrapalhar, mas o dinheiro faz-me falta. Todas fazem isto. E agora olha, já que vou ter o trabalho de o criar, ao menos aproveito o subsídio. Não lavo mais roupa à mão”.

sexta-feira, março 20, 2009

A prenda dele

Lembro-me de quase tudo. Vejo bem o meu cabelo: mais comprido, pelo queixo, mas com os mesmos caracóis. Eu tinha oito anos e franzia o nariz, desagrada. Tinha na mão um embrulho tosco que não sei precisar; era uma prenda, disso tenho a certeza.

Lembro-me de estar preocupada.

Quando sair da primária vou ter que me lembrar sozinha do dia do pai. E vou ter que fazer a prenda.

Lembro-me de ter ficado aborrecida com o peso da responsabilidade.

O meu pai tem uma figura de umas décadas depois daquela – magra, de calças à boca de sino e de bigode – que apaixonou os olhos azuis da minha mãe. É baixo e tem traços redondos (até o da careca) e vai amanhã – e ontem, e anteontem, e todos os dias antes disso – “começar uma grande dieta”.

Deu-me os olhos dele e ensinou-me a não ter vergonha das minhas ideias. Deu-me esta maneira de sentar e ensinou-me a ver o campo e a perceber a força de querer muito o que quer que seja.

Deu-me a intolerância face à preguiça mas uma vontade forte de empurrar as coisas más do mundo.

Diz-me muitas vezes “I love you”, e garante que eu ainda cheiro a bebé.

Inventou um banco de imagens no céu da cabeça dele, para onde manda todas as imagens bonitas que vê. Tem milhares de bichos da seda.

Planta os caroços de toda a fruta que come. Um dia vai ter um jardim. Tem um lagarto amigo no Parque da Paz.

Põe a língua de fora quando está concentrado. Oferece-me pedras com boas energias.

O meu pai nunca me deu prendas iguais às que os pais dos outros miúdos lhes davam. Percebi depois que nem era preciso, porque a minha prenda era ele.

Nunca cheguei a fazer-lhe nenhuma prenda do dia do pai depois de ter deixado a escola primária. Sei que não é preciso: a prenda dele sou eu.

sexta-feira, março 13, 2009

Vergonha dos olhos dos outros

«Paga-me um café e conto-te a minha vida. (...) Pago-te um café se me contares o teu amor.»
José Tolentino Mendonça

- “Estou aqui porque ainda não consegui dinheiro suficiente para a passagem. Vou para Almada.”

- “Se quiser companhia podemos ir as duas”.

- “Oh, filha, mas eu ando muito devagar!”

- “Não faz mal; não tenho pressa nenhuma”.


Conceição começou na minha vida depois de uns passos atrás. Antes era só uma figura do caminho. Do meu e do do outros. Porque quem pede é o único a esperar nos corredores onde toda a gente passa a correr.

Tem quase 70 anos, uma cara sardenta e uns lindos olhos azuis. Não tem família, vive de esmolas. Hoje parei e paguei-lhe uma viagem para saber a sua história.

Encontrei-a sentada nas escadas que levam aos comboios, no Cais do Sodré. Senta-se sempre do mesmo lado, com a cabeça encostada ao corrimão: “As pessoas estão acostumadas a ver-me neste sítio”, diz.

Seguimos. Conceição anda quase sempre sozinha. E à volta dela andam olhos pesados e indiscretos, mais trejeitos de boca e sobrolhos que indagam.

Nasceu na Amadora e mudou-se depois com os pais para o Algarve, onde viveu durante vinte anos.

- “Assim que os meus pais morreram vim para Lisboa. Gostava tanto do Algarve que nem o sotaque pegou!”, brinca.

Foi criada de servir desde muito cedo; depois trabalhou a dias. Sempre sem descontar.

- “As assistentes sociais desconfiam de mim por não ter feito descontos. Dizem que não podem fazer nada. Que mesmo quem descontou ganha muito pouco; eu, não tendo descontado, bem se vê que não mereço nada”.

Conceição não se lamenta nem fala com raiva. Não jantou, mas “está bem”.

Consegue ler “mas é uma coisa assim muito pouca”, embora a arrumação que dá às palavras não a denuncie. “Sempre que preciso de um papel para alguma coisa tenho que pedir ajuda. Mas há sempre alguém que me ajuda”, garante.

Tem uma aliança de ouro no anelar da mão direita, de linhas largas e redondas, só para afastar os homens. Decidiu ser solteira.Não ligava muito a isso. Preferia passeios e brincadeiras. E sobretudo gostava de não ter que dar satisfações a ninguém”, conta.

- “Às vezes pergunto-me se não teria sido melhor casar e agora ter uma companhia, uma família. Mas depois penso que, com jeito, ainda estava era a ter que trabalhar para um marido mau e calão. Estou muito bem sozinha!” E ri-se muito enquanto conta estórias-de-antes-daquilo-nas-pernas.

Conceição anda com muita dificuldade. Tem as pernas enroladas em ligaduras, por causa das úlceras, que não passam, e um peso imenso, do seu corpo, apoiado nisso tudo. Tem o cabelo muito sujo, com duas madeixas presas atrás das orelhas, com dois ganchos de cada lado. Está vestida de malha verde e de algodão castanho. Na mão traz um cesto de verga e uma malinha preta, tudo muito encardido.

O barco é lúgubre. O semblante dos que aqui vão é dessa cor. Faz de conta que a noite não parece de verão e que as luzes da beira das cidades não puxam os sorrisos. Os lugares ao lado do seu ficam quase sempre vazios. E à volta ficam mais olhos pesados e indiscretos, mais trejeitos de boca e sobrolhos que indagam de novo.

Ainda fala na moeda antiga e troca tudo tal e qual a minha avó. Precisa de 30 euros por mês para comprar medicamentos. Não consegue comprá-los sempre.

- “Quando não consigo o dinheiro não tomo os remédios. Perco a força nas pernas, muitas vezes fico de cama; quando tento vir à rua dou muitas quedas”.

Vive em casa de uma senhora, que há-de ter outro nome mas que nesta estória será só senhora, por ter sido assim que Conceição lhe chamou.

- “Dá-me um tecto, e isso é muito bom. Não me dá comida, porque encomenda a um restaurante e ao fim do mês passa um cheque e não conta comigo, mas não tem importância. Já me ajuda muito. E depois, tenho muita gente que gosta de mim, que me ajuda. Ando como os pombos, aos saltinhos. Quem anda nesta vida tem que andar assim. Peço no Marquês, no Rossio e ali, onde me encontrou”.

Almada chegou-se ao barco e a Conceição chegou-se uma senhora alta, muito branca, com um lenço a tapar o cabelo.

- “É uma amiga. É outra menina que me ajuda”. Conversaram, animadas, felizes.

E de novo olhos pesados e indiscretos, mais trejeitos de boca e sobrolhos a indagarem. Despedi-me e voltei costas, a soluçar. Precisava de tirar dos meus olhos a vergonha que senti dos olhos dos outros.

terça-feira, março 10, 2009

A cara velha da menina bonita

À volta dela havia uma mina de saudades – que se vai perceber o que é daqui a uns parágrafos – e um vento forte, de fim de tarde de inverno. Começava a cair com vergonha uma chuva miúda e gelada.

Ao fundo vinha, em passo apressado, já de sorriso posto nos olhos e de ramo de flores na mão. Vinha aviada de pão quente e ávida de conversa.

- “Olá, boa tarde! Então já vão embora? É uma pena não ter aqui a chave da minha oficina, gostava de vos mostrar os meus bordados. Eu faço artesanato”, começou.

Idalina é de Santiago do Cacém. Tem 78 anos. Foi viver para o Lousal com o seu marido, que veio, como vieram centenas de homens, trabalhar para a mina para vê-la depois fechar, no fim da década de oitenta. A pressa com que leva a vida não a deixa demorar-se muito nas saudades, como se demoram os homens. Além disso, a sua paixão fica numa casa ao lado desta que cai à nossa frente.



[Fotografia de Pedro Pina]

- “Eu também lá trabalhei, mas era coisa leve. Era escolher o minério, com as outras mulheres. A minha paixão foram sempre as artes manuais e a escola”.

Ela tem, em cima de um corpo velho, que não condiz consigo, uma cabeça jovem e uma cara de menina, por baixo das rugas. Idalina não tem nem mais um ano que eu, mas disfarça: traz uns collants grossos, castanhos, e uma saia de napa, de avó, como a camisola de lã cinzenta, com flores desenhadas. Os cabelos brancos também não servem senão para disfarçar de velha a menina bonita.

Conta, apaixonada e enérgica, o gosto pelo ensino, de que não tira folga, e pelos bordados, “cópias de obras com centenas de anos”: “Devia ver, menina, devia ver.” E conta que o mundo é cada vez mais pequeno.

- “Agora é tudo ali ao fundo; veja lá que eu estou a fazer trabalhos para a França e para a Guatemala. E chega tudo muito depressa! A gente põe-se em todo o lado num instantinho“.

Tem “três filhos criados, tudo doutores”, mas não tem idade para ter nenhum. Segurou no tempo.

– “Até o senhor da escola onde dou aulas me diz: qual quê! A dona Idalina não morre!”

Quis saber de nós. De onde vínhamos, por que vínhamos e deixou-se fotografar, sabendo que a que fica no retrato é a menina e não a velha.

Voltei com a promessa de um regresso. É que Idalina vai bordar-me um lindo vestido de noiva, – que até já lhe ficou na cabeça – assim que deixarmos de ser meninas.

quinta-feira, março 05, 2009

De olhos bem abertos

Não interessa o seu nome. Interessam uns olhos grandes, muito verdes, e umas pestanas enormes. Interessa que tinha os olhos verdes molhados e a cara com as marcas de parte da estória que se segue.

Ainda não era um homem: tinha 17 anos e soluços de menino. Fungava e soluçava, cheio de desamparo. E intrigava-me.

Vi-o despedir-se de um homem, com quem chegou de boleia. Vi-o depois, antes do autocarro, fumar um cigarro trémulo, encostado à paragem. Vi-lhe as mãos de dedos gordos, cheias de cicatrizes. Mas nunca o vi parar de chorar antes das palavras.

Vejo-o agora sentado à frente da chuva que bate no vidro, exactamente onde estava no início desta estória.

- “A minha mãe morreu”, disse. “Ligaram-me agora. Já se esperava, ela estava no hospital há algum tempo. Estava muito mal. Mas dói sempre”.

Sentada ao seu lado, fiz o gesto possível porque não sei o que se diz.

- “Ela não me criou. Portou-se mal. Deixou-me com os meus avós. Mas custa sempre”, continuou, já sem lágrimas os olhos verdes, ainda húmidos, e entre soluços mais espaçados.

As marcas que tinha na cara eram lembranças de brincadeiras com ciganos, em miúdo, pelas ruas de um bairro pobre, no Porto, onde viveu sempre. Diz que os garotos brincavam com navalhas pequenas, que as grandes eram perigosas.

O cabelo loiro, liso, era da mãe. O resto das feições, menos as cicatrizes, eram do pai, que não conheceu. Os passos trocados na vida eram herança dos dois.

- “A minha mãe dizia-me muitas vezes que eu era ruim como o meu pai. Que tinha aquilo da maldade no corpo. E eu acho que tinha. O problema é que também tinha a maldade dela. Juntei a dos dois”.

Ele, não sabe o que fazia. Ela vendia droga e perdeu-se, como todos, quando começou a consumir. Antes disso, a mãe levava-o para as viagens de negócios. A droga mostrou-lhe o mundo.

- “Fiz muitas asneiras durante muito tempo, depois de a minha mãe me deixar. Assaltei casas, roubei carros, que depois despachei para Espanha ou vendi às peças. Nunca tirei a carta e conduzi centenas de carros. Nunca fui apanhado mas fiz muitas asneiras. Cheguei a fazer milhares de euros numa noite. Gastei tudo com os amigos e em droga: fumava até ficar com a cabeça oca”.

A mãe deixou-o entregue aos avós quando deixou de conseguir dar conta do negócio, para se deixar consumir sozinha.

- “Respeitei sempre os meus avós. Garanti que não faltava nada em casa. Nunca faltou. A minha avó é a minha mãe e o meu avô era o meu pai. Morreu há dois meses. Era a pessoa que eu mais admirava neste mundo. Ensinou-me a andar, a falar, a ser. Foi por ele que decidi trocar de caminho. Melhor, foi por ele que consegui. Por isso é que é mais difícil de engolir: agora que comecei a fazer as coisas certas levo os castigos todos”.

Fala-me das viagens, das leituras, do cinema, da música e das namoradas.

Há quase um ano que está num centro de recuperação para jovens toxicodependentes. Já não bebe álcool nem fuma drogas. Está a tentar deixar os cigarros. Voltou à escola e deixou de ter raiva do mundo. Sorri todos os dias.

No fim da minha viagem e a meio da dele, os olhos verdes estão secos e as pestanas continuam enormes. Descemos: eu para casa, ele para o cigarro, e ambos para o adeus. Sorri e abraça-me.

- “Não precisava de te contar nada disto. Mas achei que devia. Tens ar de quem andou na escola, ar de quem acha que sabe. Eu andei perdido pela vida, é verdade. Mas queria que soubesses que andei de olhos bem abertos”.

terça-feira, março 03, 2009

A prima Lucy

Esta estória tem sotaque alentejano. E a prima Lucy também.

Eu tenho uma prima Lucy, ou Luce, em alentejano. Na verdade, não é incorrecto dizer que tenho duas primas. A Lucy, já se percebeu, é uma prima matrafona: alta, larga – de ombros e de ossos – e com boas pernas. A Lucy é tal e qual o meu tio Né, mas tem mais cabelo e bebe menos álcool.

O mais curioso – e que me levou anos a perceber – é que o tio Né foi sempre casado com a tia Mena, que nunca teve filhos. A prima Lucy foi, claro está, um grande azar.

Aconteceu que o Alentejo é um sítio onde o sono ataca com força, ora porque está muito frio, ora porque se pôs um calor que não deixa respirar. E aconteceu por isso que, durante muitas tardes seguidas, o tio Né dormiu a sesta com uma prima sua.

- “Ele vai sempre dormir a sesta com a prima Adelaide. São tão amigos, aqueles dois!”, dizia a tia Mena.

Aconteceu depois que a prima do tio Né, coitada, emprenhou, diz que de um namorado ou o que era; e que até podia ser, se não fosse o caso, que era, de a criança ter saído tal e qual o tio Né, desde os olhos míopes até ao sinal peludo, por cima da boca.

- “São da mesma família, é natural que a miúda lhe ares”, insistia a tia Mena.

A Lucy não dava só ares ao tio Né; tinha-lhe o corpo todo menos as vergonhas. E acabou por ficar lá por casa, a cargo da tia Mena, que o tio tinha que tomar conta do uísque, que é whisky em estrageiro.

A sua mãe de barriga foi para Inglaterra e vinha de vez em quando, pelas saudades da sesta. Tantas, que um dia voltou a engravidar e nasceu o primo, igualzinho à Lucy mas com as vergonhas do tio, de quem até herdou o nome mais uma variação, que é Nelo, quase para despistar. Mas isso é toda uma outra história.

Voltemos à Lucy, que foi crescendo e se fez uma mocetona. Tanto, que arranjou dois noivos. O primeiro deu-lhe o Bruno, “moço esperto qu’eu sei lá”, atesta a tia Mena; o segundo deu-lhe as gémeas, e uma bela casa perto do monte da tia Mena e do tio Né, sempre a jeitos de não precisar de fazer o comer.

A prima Lucy deixou os estudos cedo mas foi, agora que tem perto de 30 anos, resgatada pelo benemérito programa Novas Oportunidades. Há quem diga que é calona, mas “é mentira”, garante a tia Mena. A moça teve foi azar. Havia muitos professores que implicavam com ela e depois pronto, a gente sabe como é”.

E a provar o que jura a tia, Lucy tirou um curso de canalizador. Arrisco que se preparava para ser a primeira canalizadora daquela terra. Mas teve azar. Que jeito tem uma mulher daquelas – uma mocetona daquelas – no meio de tantos homens?

- “Olhavam muito quando eu me baixava, era uma pouca vergonha!”, queixa-se a Lucy. Teve que desistir.

- “Mas é uma lutadora”, defende a tia. “A minha Luce é uma lutadora. Agora está a estudar para recepcionista de hotel”.

- “Mas isto agora é diferente. Ir à escola já não como era. Este curso é mais difícil. Está bem que deram um computador e que só pago 15 euros por mês, e que assim já posso ver a matéria toda na Internet. Mas até é preciso as leis de Newton”, lamenta-se, sem, porém, perder o entusiasmo: “Agora é que vai, prima, agora é que vai!”, sorri, de boca larga.

E vai de certeza. Agora é que a Lucy apanha o comboio da sorte! Tirando o facto de não haver nenhum hotel na sua cidade, e de ela não poder de forma alguma largar a saia da tia Mena, não vejo razão nenhuma para que a Lucy tenha azar desta vez.