quarta-feira, fevereiro 10, 2010

A história que ele não me contou

Verdes olhos, pequenos, húmidos. Mãos agitadas. Uma história que se insinua em cada movimento, que me provoca. Mas que nunca aconteceu.

«1980. A 28 de Março criava-se a Força de Unidade Popular. A 20 de Abril, as Forças Populares 25 de Abril (FP 25) apresentavam-se ao país, com a publicação de um manifesto.

Mais tarde foram consideradas o braço armado Força de Unidade Popular, organização política de extrema-esquerda que nasceu do descontentamento com aquilo que considerava serem os desvios ideológicos e programáticos em relação ao espírito da Revolução de Abril de 1974»1.

O homem à minha frente sublinha que não sabe do que falo, insiste que não tem nada para me dizer. Não o disse à mulher ao lado de quem se deitou durante mais de 50 anos. Não há nada para dizer. Não mo diria mesmo que eu lhe matasse os filhos e os netos.

“Houve momentos em que o sonho – o que comanda a vida, e o que concebemos durante 40 anos de ditadura – estava a ser defraudado. Havia muralhas que não queriam deixar o mar avançar. Era preciso fazer alguma coisa”.

«Depois de algumas acções terroristas de intimidação e afirmação do movimento, como o atentado à bomba a de 3 de Fevereiro de 1981 contra o Banco do Brasil, as FP 25 começam a sentir uma oposição concreta da esfera política portuguesa e a condenação da sociedade»1.

Foi perseguido. Esteve preso durante três anos, enquanto aguardava julgamento. Fez greve de fome durante 38 dias. Foi libertado por falta de provas.

“Conhecia perfeitamente os que andavam atrás de mim. O cheiro a merda era insuportável. Vieram buscar-me às seis da manhã. Não havia nada a confessar, nada foi feito. Nunca fui criminoso, nunca matei ninguém, não tinha nada para contar”.

Ainda hoje não sabe se a Revolução triunfou. À minha frente , aquelas mãos mostram uma luta acesa de vontades.

“Ninguém lhe contará história nenhuma. Se abrir a boca pisou os ideais e não precisa de estar vivo. Levem-me tudo, mas deixem-me as convicções. A Revolução está pisada. Os políticos que nos governam cheiram tanto a merda como os polícias que nos perseguiram”.

Ainda hoje vê o homem explorado pelo homem. Vê-se pela força daquelas mãos que tem a certeza de que ainda fazia sentido levantar as armas. Na verdade, sente-se na sua voz que nunca as baixou.

«As FP 25 assaltaram bancos e assassinaram pessoas. A 19 de Junho de 1984, a PJ desencadeou uma operação contra as Forças Populares. Os “arrependidos” ditaram o andamento do processo judicial. A 20 de Maio de 1987 Otelo Saraiva de Carvalho, herói de Abril, foi condenado a 15 anos de prisão. Cumpriu menos de dois anos»1.

Este homem à minha frente, mãos acesas de vontade, não sabe de nada, não viu nada. Não tem ideia alguma daquilo de que lhe falo.

Verdes olhos, pequenos, húmidos. Mãos agitadas.


“Quando estiver com o Otelo faça-me um favor: mande-lhe um abraço meu”.

1 Adaptado de: FP 25 (Forças Populares 25 de Abril). In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-02-08]. Disponível na www: .

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

Os espiões à volta dele

Álvaro há-de ter entre 60 e 70 anos.

Tem os ombros encolhidos, ao nível das orelhas, para que as mãos lhe caibam nos bolsos das calças sem que os braços se estiquem. Tem um semblante cinzento, cerrado, tenso.

Precisa de estar sempre atento, vigilante. Nunca está sozinho.

Esteve em África e há quem diga que foi daí que eles vieram, os que não o largam.

Álvaro deambula pelas ruas como se tivesse o corpo oco. É uma figura escorrida, tensa, pesada nos passos e no desenho dos olhos.

Não é fácil fazê-lo trocar de roupa, tomar banho ou cortar o cabelo. Duvido que seja fácil fazê-lo adormecer.

Ele precisa de estar sempre atento, vigilante. Nunca está sozinho.

Só come enlatados ou fruta fina, que o lembra de África. Lava toda a comida antes de a levar à boca. Eles estão sempre a tentar envenená-lo.

Vive num bairro onde todos os dias há tiros e assaltos, onde os gritos são permanentes, onde os miúdos têm que crescer depressa para tomarem conta dos mais miúdos ainda, onde as meninas já são mães, onde o lixo se amontoa.

Álvaro aproximou-se de mim. Olhou-me. Tinha uma história para me contar. Chegou-se mais perto. Mas não podia.


Precisa de estar sempre atento, vigilante. Porque nunca está sozinho.