sábado, dezembro 20, 2008

Epílogo, retrato ou os Caboverdianos são portugueses fermentados

É olhá-los de perto e percebe-se o desenho todo. O fio da história cravado neles, inexorável. Os cabo-verdianos são portugueses fermentados. São o molde exacto dos que vieram mais o terem ficado ao sol, à espera que crescesse tudo.

Bur’organização e monofuncionalismo

São dez da manhã. A única papelaria da Achada de Santo António, na Praia, está a abarrotar, embora o seu espaço seja consideravelmente amplo. Podia ser uma feira, não fosse não se ouvir barulho nenhum; não fosse não se sentir qualquer movimento. Podia ser uma multidão com o dia estragado, por estar suspensa por um lápis, uma cartolina ou umas folhas quadriculadas. Mas não é. É um molho de gente placidamente à espera, de pé.

- Precisava de cinco cartolinas de cores, a quem é que as peço?

E nenhuma resposta, tudo calado. E eu irrequieta, a olhar, a levantar o braço, a fazer sinal aos funcionários, a tentar perceber em qual das filas devo alinhar.

Passam-se dez minutos até poder ter a atenção da senhora do balcão central.

- É simples. Fica nesta fila para pedir, pede e eu dou-lhe o talão; segue para a fila da caixa, onde paga; e depois volta aqui para que eu lhe dê aquilo que pediu, com o talão carimbado, assinado e registado pelo meu colega, sim?

Baixei a cabeça e ocupei o último lugar na fila da primeira etapa. Fiz de conta que não queria perguntar por que estavam dois senhores dentro do balcão sentados a olhar. Mas devo ter sido pouco discreta.

- Aqueles meus colegas estão encarregues das devoluções, o trabalho deles não se mistura com o nosso!

A selva de alcatrão

A Praia é uma cidade vaidosa mas atravancada, barulheta, nublada. Há pedaços de estrada nos buracos. Há sete trabalhadores da câmara a olharem para dois a abrir ou a fechar um buraco em hora de ponta; há filas de trânsito a todas as horas e há uma condução expedita e familiar.

Os cintos de segurança diz que apertam o tórax e que não merece a pena. Os piscas diz que são aborrecidos, porque eles é sempre um tic-tac-tic-tac-tic-tac. Na estrada comunica-se com a buzina: do “olá” ao “adeus”, do “passe, minha menina, para que a veja de costas”, ao “anda, palhaço!”
As passadeiras são lindas e animam muito a estrada, que sendo apenas preta não teria graça nenhuma. Os semáforos gastam um balúrdio em luz, mais vale estarem desligados. Os taxistas são mais do que os buracos na estrada e ainda mais do que as lojas do chinês. Ultrapassar é como calha, incluindo pela direita. Parar é onde for, conduzir é sempre a aviar.

Um relógio lusitano

A noção do tempo aqui é a noção do tempo em Portugal, mais o fuso horário e mais o sol, e mais o problema com o trânsito, e mais as chatices com os autocarros e mais os malvados taxistas, e mais os vários filhos e menos pressa – muito menos pressa – e a certeza de que nada começa com menos de meia hora de atraso. A juntar a esta ainda outra: a certeza de que não se verá ninguém inquieto com isso.

Até o patriotismo português dos dias de jogos da selecção – mais os cachecóis, mais os bonés, mais as t-shirts oficiais, mais os apitos e as buzinas – ficou cá, mas muito mais inchado: tanto, que se tem vergonha de se dizer que não se tem; que se esconde uma necessidade para dar boa imagem do país.

Ficou ainda o engate luso, mas com sangue mais quente; a cerveja com mais calor; o Benfica, o Porto e o Sporting; a homofobia e aquilo que enche o peito dos portugueses de vez em quando e mantém os cabo-verdianos a sorrir, todos os dias, de coração: o “saudinha-é-que-é-preciso”, o “tudo-se-cria” e o “há-de-acontecer-se-Deus-quiser”.

Adeus, professora Joana

Decidi aproveitar o facto de não ir trabalhar para usar chinelos.
E foi assim descalça que fui dar a última aula de inglês.


- "Joana, os teus pés são brancos!"

- "Sim. Eu não sou toda branca?"

- "Pois, mas os pés também? É muito estranho..."






A minha turma.

terça-feira, dezembro 16, 2008

Arrumações praticamente implacáveis

No Plateau, downtown da Praia, os passeios das ruas eram percursos sinuosos entre magotes de vendedoras e os seus arraiais, estendidos por onde calhava, e clientes, transeuntes e curiosos.

«Um panorama desagradável para a emblemática parte histórica da capital do país», lê-se no Expresso das Ilhas de 19 de Novembro.

Havia, pelo chão e pelas bancas improvisadas, alguidares com cachos de bananas e torres de pêras, maçãs ou laranjas; tábuas encardidas com peixe e carne de várias qualidades, ao calor e às moscas; amendoins, pastilhas, bolos, bolachas – caseiras e embaladas – e cigarros – em maço ou avulso.

Havia aguadeiras com garrafões, garrafas e geleiras, na tarefa hercúlea de manter a água fresca, misturando pedaços de gelo partidos com as mãos nas garrafas já usadas, prontas para revenda.
Havia vendedoras de roupa, pedintes e homens de boa fé, encarregues de oferecer aos turistas um câmbio informal de qualquer moeda do mundo em escudos: “Câmbio! Bom negócio, bom negócio! Câmbio? Change? Quer casar? Okay, saúde e boa sorte.”

A Câmara Municipal da Praia resolveu fazer uma limpeza geral e varrer uns feios para debaixo do tapete.

«De acordo com Óscar Santos, vereador responsável pelo processo de transição das vendedeiras ambulantes, o objectivo primordial é fazer com que essas pessoas exerçam as suas actividades com mais dignidade. (...) Para isso, a CMP remodelou o mercado da Achadinha, Paiol e Vila Nova (...) e decidiu pela isenção de taxas durante seis meses e, depois, no pagamento da metade dos preços. »

A data limite para que os 2 000 feios que vendiam no Plateau parassem de estragar as vistas era 1 de Dezembro. Seriam, entretanto, «distribuídos por vários mercados, de acordo com a sua zona de residência.»

A Câmara fez um trabalho louvável: deixou tudo para o grande dia!

Maria de Lurdes tem pouco mais de 50 anos e está entre a multidão de mulheres indignadas que preenche cerca de quinhentos metros quadrados na extensão do mercado de Sucupira. Não percebo uma palavra. Vejo gestos bruscos, bocas abertas, aos gritos. Maria foi sempre vendedora ambulante. “Houve muita gente que não conseguiu um espaço. Eu não consegui e ninguém me deu nenhuma satisfação”, grita-me.

Ela é só um dos 1 200 problemas que a Câmara tem ainda por resolver. Este espaço tem lugar para 800 vendedoras, cada uma na secção destinada aos produtos que vende, e a ocupar escrupulosamente o seu pedaço de asfalto, delimitado a amarelo.

“Há mais mercados”, explica-me Maria de Lurdes, mas as pessoas estão habituadas a vender nos seus sítios. Têm os seus clientes. Não há direito!”

Para além disso, todas querem ficar nos lugares da frente, onde os clientes vão chegar primeiro. Ninguém percebe a lógica da arrumação.

A agitação é enorme. É um motim contra o pobre homem da Câmara a quem delegaram a tarefa de estar com um papelinho rabiscado a indicar os lugares às mulheres. É franzino e tem uma voz conforme. É uma presa nas mãos destas senhoras, habituadas à caça feroz da vida neste país. Vi-o duas vezes entre a multidão, sempre de fugida, a correr à frente de gritadeiras enraivecidas. Não sei se saiu vivo dali.

O Vereador justificou, posteriormente, os «pequenos desacatos» com as «atitudes menos próprias das vendedeiras. Muitas apresentaram identificações falsas e algumas exaltaram-se um pouco», afirmou.

Resumindo as coisas, a Câmara deu conta do recado e o Plateau, asseguram, “está agora limpo e ganhou uma nova vida! Já não há vendedoras, as ruas estão mais amplas e com melhor circulação.” Já não há nada disso porque agora é tudo proibido.

Vale à essência da Praia a herança portuguesa do deixa-lá-ver-o-que-isto-dá. É proibido, sim, senhor, mas no dia 2 cada um voltou ao seu lugar nos passeios do centro da cidade e, até ver, o Plateau continua exactamente na mesma.

quarta-feira, dezembro 10, 2008

As caras da Calheta

Boca Ribeira fica perto da Calheta, no Concelho de S. Miguel. É das zonas mais pobres da ilha de Santiago. Fica a cerca de duas horas da Praia, a caminho do Tarrafal.

A aldeia está cercada por montanhas imponentes, recortadas a verde e castanho.

As casas são abafadas e cheiram todas a falta de água. As paredes nunca chegaram a ser pintadas e têm décadas de mãos sujas de raspão.

Os olhares são curiosos e progressivamente mais. Uns chamam outros e percebe-se que somos a notícia do dia.

Aqui, como de resto um pouco por toda a ilha, a vida passa-se na rua. Os homens demoram-se nos cafés; as mulheres levam metade da vida à cabeça e os miúdos pela mão ou às costas, atados com um pano.

Cheira muitas vezes a refogado: umas tentam vender alguma comida, outras vendem frutas, bolachas, doces ou amendoins. Há ainda as que vendem roupa. E há as que vendem tudo isto.

É frequente ver-se meninas a fazer o lugar das mães, quer seja a tomar conta de irmãos mais novos, quer seja a vender, numa paciência venerável, muitas vezes ao ritmo de três ou quatro maçãs por dia.

Paramos numa rua onde o meu amigo tem um irmão. Fico à porta – não consigo voltar a entrar na casa – e assomo-me aos vizinhos, que gozam o dia a arrefecer. São quatro da tarde.

Um rancho de crianças. Têm vergonha de falar português e percebem mal o que digo. As mais velhas convidam-me, com gestos, a sentar-me, enxotando os dois meninos que lá estavam antes de mim. Observo-as, observam-me. Riem-se. Tenho vergonha de não saber falar crioulo e defendo-me da falta de palavras com fotografias.



O Iace tipo e o tipo do Iace

Valter é iacista. A bem dizer, é um camionista mal amanhado e crioulo. É dono e condutor de um Toyota Hiace, o famoso iáce, onde cabe Cabo Verde inteiro e mais umas tralhas. Tem 25 anos e transpira estilo.

O seu carro é verde escuro porque o dono é um sportinguista convicto. No retrovisor tem um penduricalho que fede a lavanda ou assim; um faz-de-conta-que-isto-alivia-o-cheiro-a-mamífero-transpirado.

- “Tarrafal? ‘Somada?”
E um braço forte, de fora do carro, a chamar passageiros. “Trabalho sozinho, prefiro assim. Eu arranjo as pessoas, compensa.”

Mais acima, no espelho, tem colado o nome da filha, escrito com letras douradas. Aline. “O da mulher é melhor não. Sabes como é, princesa, a vida dá voltas, e o autocolante é difícil de descolar, depois deixava-me marcas no espelho.”

Valter tem uma condução arrojada, domina a viatura num estilo seguro e jactante. Ajudam, claro, os pedais modificados, que têm um adaptador com borrachas, “para aumentar a aderência do pé à chapa”.

“Podia andar a duzentos à hora”, assegura, “mas a gasolina está cara.” Pavoneia-se nas estradas da Praia, enquanto procura clientes, e depois rasga sem piedade a paisagem verde, a caminho do interior. É sexy, irremediavelmente sexy.

- “’Somada! ‘Somada!” O braço é musculado. Coisa trabalhada, bem se vê.

Conduz só com uma mão e aperta a buzina como ninguém: “Criei vários códigos com people meu amigo. Invento maneiras de dizer cenas só a apitar.” É um poeta das buzinadelas. E “pode dar-me umas dicas um dia destes.”

Valter tem brio no seu iace, cuida dele. Lava-o três vezes por semana. “Ele é parte da sua personalidade”, assegura. No tablier há sempre uma coisa que fica entre a ideia que se tem de um cachecol cruzado com um tapete, mas farfalhudo muito para além do possível.

Todos se benzem antes de começarem a viagem. E o Santo António está colado em cima do rádio, “para abençoar os caminhos.” Por isso, ninguém usa cinto de segurança. E por isso Valter exala confiança: das curvas apertadas, normalmente em contramão, até às ultrapassagens pela direita, sem esquecer uma boa ultrapassagem numa curva cega, sempre a abrir.

A música vai tão alta que se sente o eco dentro do corpo. O som perde toda a definição, mas isso é absolutamente irrelevante. Importa o rádio fluorescente que Valter comprou: faz quase mais coisas do que a Bimby, com a vantagem de ter um comando à distância, “que dá jeito quando é preciso levar a miúda para o banco de trás mas às vezes tem umas falhas.”

A sua sorte, confessa-me, já quase no fim da viagem, é que, como vai sempre a conduzir, no caso de o comando falhar, só precisa de “esticar o braço e mudar de música com a mão.”

Grogue

O grogue é uma bebida tradicional de Cabo Verde. É feito por mulheres fortes e por homens a cair de bêbedos: há profissões que descem mais às pernas do que outras.

sexta-feira, dezembro 05, 2008

Avó Margarida

Tem um desenho fino, frágil. Um corpo franzino e miúdo. Uma tez serena, feliz, imperturbável. Tem os olhos muito pequenos, negros, escondidos nas rugas da cara.
Está normalmente sentada: ou numa cadeira de plástico que já foi branca, ou no degrau da porta de sua casa, com as pernas dobradas para um lado, com jeitos de princesa.
Chama-se Margarida Gomes Forte. “85 anos, nascida e criada na Praia. Cabo-verdiana natural.”

Tem um bibe igual ao da minha avó, mas muito encardido e com falta de botões. Não cheira como a minha avó. Também tem o cabelo grisalho mas muito mais crespo do que o dela. Tem um casaco de malha muito sujo, preso com um alfinete-de-ama. Tem calçadas umas sandálias que lhe ficam grandes. Tem as unhas dos pés e das mãos por cortar.

Casou aos 23 anos com o homem da sua vida, que fez outras vidas por fora e morreu há muito. Juntos tiveram 12 filhos. Dois morreram; os outros dez estão espalhados pela vizinhança, pelas ilhas e pelo mundo. “Neto nem conto. Ten un monti! Neto, bisneto.. Um monti!”

Margarida tem a vida de todas as mulheres, mais parágrafo, menos parágrafo. E diz-me todos os dias, como quem me benze: “É assim, filha: vida no mundo, vida di alegria, vida di tristeza, vida-tudo. Ten hora qui sabi, ten hora qui ka sabi. Ten hora di tudo. Assim qui nós bai!”.

E ri-se com aquele rir de olhos que já viram o que importava ver. E deixa-se estar, sentada, na corrente de ar, a ser todos dias o desenho da rotina que deixei em casa.

Levanto-me, dou-lhe um beijo e digo-lhe sempre: “Obrigada pela conversa, dona Margarida.”

E penso sempre, sempre, enquanto aceno, garota mimada, cheia de saudades: “daqui a sessenta anos quero ser tão linda como tu. Até amanhã, avó.”

quarta-feira, dezembro 03, 2008

Amor velho, como a cidade


Fica a 80$ e a meia hora do centro da Praia, na escala de tempo de um Iace acolhedor, sempre tão cheio que dá gosto.

A paisagem foge a uns 80 à hora, aos ziguezagues e solavancos. A estrada rasga montanhas de terra, com um recorte perfeito na linha do horizonte.

As colinas estão pontuadas com verdes assimétricos e animais de quinta avulsos.

Percebe-se que o destino está próximo pela arrumação.
A cidade velha vive numa quietude intocável. É uma cidade de antes do cimento, das estradas só de pó e das casas por acabar.

Foi a primeira capital das ilhas de Cabo Verde e o berço da cultura do arquipélago. Começou a crescer a partir de 1942. Está na história como a primeira cidade-porto construída para o tráfico transatlântico de escravos, e foi o caldeirão dos amores entre escravas e senhores portugueses e espanhóis.

A Cidade Velha foi palco da recriação do mundo Altlântico. Agora, é só umas coisas que se passaram há uns séculos.

A vista começa na curva onde se vê o mar pela primeira vez e termina na pequena praça do centro, que desemboca em dois restaurantes com esplanadas coladas ao mar.

À esquerda há cadeiras de plástico e a sombra nas mesas enferrujadas é dada por umas palmeiras pequenas, ratadas e feias. À direita as cadeiras são de verga, as mesas enormes, cobertas com toalhas de linho, impecáveis, tudo à sombra ampla de árvores altíssimas. Acho que nem as moscas são as mesmas. Os galos é que vão e vêm, sem distinguir o canto que fica mais perto dos ricos e o que fica mais perto dos pobres.

Chicharro frito com arroz e saladinha. 200$00. E um café. Antes disso a sorte de haver luz, a sorte de haver água, e a sorte de não ter chegado ali dois dias antes, quando a bomba da máquina se tinha estragado. Café, enfim.

As casas ao lado do restaurante têm uma porta para a beira-mar, outra para a rua principal, que dá para a praça.

Esta casa estava de portas abertas. E tinha um movimento de maré – gente a entrar e a sair; muita gente. Uns vizinhos, outros amigos, outros as duas coisas e muitos deles só curiosos, de passagem.


As janelas e as portas estavam presas com pedras para se manterem abertas. A corrente de ar disfarçava a falta de ventilação. Quando a brisa abrandava, o cheiro era intolerável.
Em primeiro plano estava, sentada numa cadeira de rodas, uma senhora muito mais velha do que as suas rugas deixavam perceber. Amputaram-lhe uma perna há um ano, conta-me depois, muitas vezes seguidas. E depois outra vez. Tem vestido um bibe verde e por cima uma camisola cor-de-rosa. Pelas costas traz um casaco azul-vivo, com círculos brancos. Está descalça.

Ao fundo, num sofá a cair de velho, uma menina de 12 anos ralha com uma de dois, para que coma o iogurte.

“O meu nome é Catarina Pereira de Sousa”, murmura, da cadeira de rodas, num crioulo muito mastigado, que me custa a entender.

“Catarina Pereira de Sousa, o meu nome. Catarina.” Chama-se Catarina Pereira de Sousa muitas vezes todos os dias.


- “Come o iogurte, não tenho tempo, Luna! Come o iogurte, vá!” A moça, num ralhar nervoso e a outra, mais miúda, de beicinho e a ameaçar chorar.
Catarina tem na mão um pano de cozinha, que enrola e desenrola compulsivamente.

- “Não sei quantos filhos tenho. Sete, oito ou nove. Nem sei quem são estas pessoas aqui de casa.”

Não sabe dos netos, nem dos vizinhos, nem dos curiosos. Não sabe de mim mas vai falando. Chama-se de novo Catarina Pereira de Sousa. E grita com toda a gente, nos intervalos da nossa conversa de surdos.

- “Esta casa me pertence. O meu nome é Feliciano Sanches Cimeiro.”

A figura negra, de cabelo crespo e grisalho, vem da porta que dá para a linha do mar. Veste uma camisa azul, mais clara do que o casaco de Catarina, e umas calças que lhe dão pelo tornozelo. Também está descalço.

- “Sou Feliciano Sanches Cimeiro. Esta casa me pertence.”

Tem uma boca grande, sem nenhum dente, e lábios muito grossos.

- “Não te dou mais comida nenhuma hoje se não comes isto! Vá!” E a miúda a virar a cara e a querer sugir do colo da outra.

- “O meu nome é Catarina Pereira de Sousa.”

- “Sou Feliciano Sanches Cimeiro, filho de Cosmi Cimeiro.”

A pequena a chorar, a maior a gritar e Catarina a gritar por cima várias palavras que não entendi, sempre com o olhar perdido no vazio. Enrolava e desenrolava o lenço sempre ao mesmo ritmo.

Parou de gritar e voltou a mim, e voltou a chamar-se Catarina Pereira de Sousa. Respondeu-me sempre isso. Por trás, o seu marido respondeu-me sempre Feliciano Sanches Cimeiro, a tudo, muitas vezes.

- “O senhor Feliciano foi professor toda a vida, adorava dar aulas. Sabia muitas línguas, era doutor. Um doutor. Quando se reformou enlouqueceu. Agora pesca para poder sobreviver.”

- “E a mulher dele, o que tem a Catarina?”

- “A D. Catarina ama o senhor Feliciano. Ele enlouqueceu e ela enlouqueceu com ele”.

quinta-feira, novembro 27, 2008

Os restos da Praia

O centro da cidade da Praia é radiante, animado, revolto, desarranjado mas in, vistoso e crioulo.
Tem muito trânsito, boas estradas e pessoas bonitas, urbanas de andar dançado e quente, com um balanço de funaná nas ancas.
Tem vestidos de cores e vaidades. E mostra-se no barulho das palavras gritadas ou cantadas por todos os cantos: pelos carros, pelos bichos e pelas pessoas.

E depois do centro, a cidade da Praia tem os restos disto tudo: os feios; os desempregados; os que somaram azares e coincidências infelizes; os sujos; os que não sorriem porque já não têm dentes; os que têm as roupas rotas, sem cor; os que têm que andar descalços; e os que são tudo isto ao mesmo tempo.

Chamam-lhe bairro da Jamaica ou da ladeira do aeroporto velho.
É clandestino e nasceu há 3 anos. Fica a 15 minutos do centro da cidade. Apesar da brisa, o cheiro é isuportável. Não há água, não há luz, não há esgotos. Há uma lata que já foi de leite – num dia em que houve dinheiro para a comprar ou em que alguém veio oferecê-la – e “depois deita-se tudo nos contentores, ou no chão”, é indiferente.

A paisagem mistura o cimento das 30 casas que compõem o bairro, algumas manchas de um verde que não serve para nada, porque a terra não é fértil, e o castanho do pó que se levanta da estrada de pedregulhos e terra batida.

Passam, devagar, galinhas, vacas, bezerros e porcos cheios de carraças e tão magros como os orçamentos que estas famílias têm para sobreviver.

Guida tem cinco filhos e “um pouco de pão e água com açúcar no estômago”; a única coisa que conseguiu arranjar para comer de manhã. De resto, ou restos ou nada: Não tem cama, não tem colchão, não tem emprego, não tem fogão, não tem nenhum pedaço de terra para cultivar, não tem um negócio. Também não tem marido:“Ao menos assim não vêm mais crianças”, diz-me. Olhos negros, grandes, rasgados e brilhantes. Um corpo esguio numa camisa de mangas cavas e nuns calções largos, pretos.

Guida tem, se quiser água, uma hora de caminho pela frente: meia com o bidão vazio, na mão, outra meia com ele cheio, à cabeça. Tem sapatos, de quando em vez, se os restos forem do seu número ou de um número a mais ou a menos.

“O meu dia? Acordo, se tiver comida como. Se não, espero. Logo se vê. Umas vezes as vizinhas dão, outras vezes elas também não têm. Espera-se.”

Fala-me com calma e solta várias vezes gargalhadas. Tem um sorriso lindo, luminoso, franco. Percebe mal o meu crioulês ridículo, só tem restos de português na cabeça. Aprende a língua quem vai à escola, e sem dinheiro não se vai a lado nenhum: espera-se.

“Os meus meninos vão muitas vezes dormir com fome”, conta-me, de cabeça baixa.

Andam sempre a pé. Mas têm telemóveis: “uma vizinha deu-nos. Disse que era porque podíamos precisar de alguma coisa. Ainda não precisámos de nada de especial.”

“Não temos serviço médico porque é preciso algum dinheiro para fazer a ficha e para pagar taxas. Quando estamos doentes esperamos que passe.”

Susy é filha de Guida. Tem 12 anos e um ar doce, levemente cansado do esforço para se parecer com as meninas da sua idade. “Na minha escola não há quase ninguém que viva num sítio como este.”
Tem dois brincos diferentes, porque eram os restos do guarda-jóias que alguém lhe ofereceu. Mas não faz mal, “faz de conta que é de propósito.” Ajeita o cabelo que traz apanhado num rabo-de-cavalo e as roupas usadas, encardidas.

Está de saída para a escola, avisa que não pode demorar-se, que tem que contar com meia hora a pé.

“Hoje até acordei aborrecida. Ainda bem que vieram. Com a televisão aqui fico muito mais descansada. Sei que as coisas vão resultar. Eu hei-de sair daqui. Vou estudar para ser professora. E agora sinto mesmo que vou.“

Engoli em seco e pus a caneta no bolso.

A notícia de que a televisão está por ali corre depressa. As pessoas vão chegando, com crianças pela mão e com o melhor que têm vestido. Põem-se em fila para contarem a sua história.
São muitas caras, muitos nomes, percalços diversos mas o mesmo fim, numa esteira enxovalhada, estendida no chão de terra de uma casa ilegal, abafada e fétida. Um estômago vazio de comida e uma alma cheia de esperança.

Despedi-me com um sorriso preso, um nó na garganta e com as lágrimas suspensas pelo respeito.

Segui com tudo apertado no peito para Palmarejo Grande, a 10 minutos deste sítio, onde o primeiro-ministro de Cabo Verde, José Maria Neves, ia lançar a primeira pedra de um luxuoso e megalómano empreendimento de habitação.

“É tempo de pensar em construção de qualidade em Cabo Verde”, afirmou.
Garantiu, porém, que a habitação social “será construída numa das próximas fases do projecto de restruturação urbanística da cidade.”

Na minha cabeça, aos soluços e entre os ecos do estômago dos habitantes do Jamaica, ouvi palavras diferentes, as da vida real, saírem traduzidas da boca do chefe de Governo.
Ouvi que vai ser tudo como de costume: assim que os bonitos estiverem arrumados, arranjam-se uns restos para os feios ficarem menos descontentes e fazerem menos barulho.



quarta-feira, novembro 26, 2008

O poeta da Praia

“O que é lindo é lindo; o que é fantástico é fantástico; e o que é romântico é romântico. E este espaço é isso tudo. Fique connosco no espaço do amor.”

Voz rouca, como quem quer puxar a coisa para o sexy, boca colada ao microfone, como quem fala ao ouvido. Puro charme cabo-verdiano. Como sempre e em tudo.

Sorri e o António veio-me à cabeça. E o Rui, o Edimilson e o Valter. O José e o João. E todos os outros: dezenas. Todos na minha cabeça mais a poesia do engate cabo-verdiano.

Todas as mulheres são lindas aqui, mesmo depois de acordar, mesmo despenteadas, sujas, ramelosas, mesmo tudo. Não é difícil receber mais de três pedidos de casamento por dia.

Ser mulher branca é um bocadinho pior. É mais ou menos ser a sensação da rua em que se passa, qualquer que ela seja. É ver cabeças a girar, sentir olhares demorados, ouvir convites desaforados. E desejar, mais que nunca, ter, efectivamente, o rabo monstruoso, a cara terrível, umas pernas gordíssimas e um corpo de barril. É perdoar todas as divas da pop por serem tão lindas, porque, no fundo, ninguém merece.

Eram duas da tarde. A praia estava quase vazia e a minha hora-e-meia-duas de almoço estava quase no fim. Fui espreitar o sol e molhar os pés.

- “Olá! Como te chamas? Tens medo da água?” Figura negra, alta, encorpada. Olhos escuros e t-shirt na mão.

- “Vim só molhar os pés, vou trabalhar.” Olhei para o lado, como quem foge, entre o medo e o como-é-que-é-possível-que-as-solteironas-desesperadas-do-mundo-não-tenham-ainda-ouvido-falar-desta-libido-atlântica?

- “Não devias vir tão vestida para a praia, não é justo. És egoísta. Queres o meu calção, agora que já tens o meu coração? Assim podias mergulhar, eu ia gostar... Como é que te chamas?”

- “Não vale a pena, obrigada. Joana. Tu?” E uns passos para o lado, sem querer parecer mal educada.

- “O meu nome é ti amo, o meu apelido é ti quero, fofa. Dás-me o teu número? Acho que podíamos conversar um bocadinho, estou a sentir por ti um fraquinho.” Um balanço gingão e um piscar de olho gabiru.

- “Tenho que ir, desculpa.”

-“Ah, que chato! Dou-te pelo menos um beijinho antes de ires! Só quem gosta de verdade é que sabe o que é a saudade. És comprometida, quirida?”

- “Claro! Tenho dois namorados, pelo menos. Enormes e muito fortes.” Passos maiores para longe, mas a mão dele na minha.

- “Eu posso ser o terceiro. Também tenho duas mulheres, uma quase a ter um bebé. Vamos ser muito felizes. Queres casar? Vou saber ti’amar.”

-“Não me dá jeito, mas obrigada pela atenção.”

- “Vá lá! Eles são brancos? Deixa eles. Preto faz melhor relação do que branco. Tenho um coração grande, cabe tudo. Quando vejo uma princesa assim, fofa, o coração bate alto, alto, alto e cresce. Dá-me um beijinho, mata esse fraquinho.” Um avanço e medo, a fugir, definitivamente.

- “Adeus!”

- “Não posso te beijar? Tudo bem, não vou forçar. Vou guardar o desenho dos teus olhos para em segredo te amar.”

Quase corri para o táxi. Entrei e suspirei de alívio. O senhor respondia a tudo “oui-oui”. Um descanso. Ainda tentei perceber se falava português ou francês, ainda lhe disse que era portuguesa e jornalista. Depois desisti. “Oui-oui! Oui-oui!” Um descanso.
Cheguei ao destino ainda com aquele poeta gabiru na cabeça. Ilustração perfeita de todos os homens cabo-verdianos. Abri a porta do táxi e virei-me para receber o troco. O motorista tinha outra cara; abriu a boca toda num sorriso gigante:
- “Portuguesa, foge com mim para portugal! Por amor!”

terça-feira, novembro 25, 2008

O tempo, com muito mais tempo do que o tempo que o tempo tem

O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem. O tempo respondeu ao tempo que, em Cabo Verde, o tempo tem muito (muito, muito, muito) mais tempo do que o tempo que o tempo tem.
- “Um café, por favor.”
- “Espera um bocadinho.”
Está a chover. O Inverno da Praia cola-se ao corpo, é húmido. Não é bem chuva, é uma ameaça. É uma chuva que corre devagar. Voa, nem chega a cair. Apetece gritar-lhe para se despachar. Ela veio mas o calor não foi, ficou. Húmido e peganhento.
É o tempo que não deixa o Inverno entrar. Deixa-o tanto tempo à porta à espera, que ele acaba por só conseguir soprar uns choviscos. E vai andando, sem ter tempo de fazer o tempo frio.
Aqui a medida do tempo é a espera. Espera-se. É assim que se vive. À espera: de tudo, por por tudo, por nada, por tempo indefinido. E impassivelmente.
- “O café, ainda vem?”
- “Sim, vai. Está a ir. Espera um bocadinho.”

E um sorriso largo, sentido, de olhos rasgados.

As casas com as vergonhas à mostra, todas em cimento, esperam dias melhores; as outras –que vivem dias melhores – vestiram-se de verdes-alface e por aí acima, à espera de festa; a maior parte das mulheres espera um filho; as que os trazem pela mão esperam não voltar a engravidar; e os homens, a julgar pelos olhares lascivos, esperam todo dia pela altura de fazê-los.

-“A máquina avariou?”
-“Não, senhora. Está a ir.”

Meia volta, o rabo a gingar ao som da música.

Cá fora, as vendedoras esperam pelos clientes. Lá dentro, os comensais esperam uma hora e meia pelo almoço, se o pedirem entre um beijo e um abraço à empregada, enquanto piscam o olho à cozinheira, e, claro, se estiverem sozinhos no restaurante. À noite espera-se pelos ladrões, porque antes disso já se esperou pela iluminação das ruas.

-“Estou a ficar sem tempo, princesa Antónia. Esse café, minha querida?”
-“Sim.”
Assente e passa a mão pelo cabelo. Sorri de novo. E ginga e bamboleia-se e rebola-se. E demora-se. E demora tudo, e demoram todos.

Mas não há pressa. Ninguém suspira de despero; ninguém está atrasado, ninguém rói as unhas ou treme a perna, em bicos de pés, sentado. Há tempo. Muito tempo, tanto tempo, todo o tempo que for preciso, e ainda tempo de sobra.

O ritmo do tempo destas vidas é o compasso de uma dança vivida, descomprometida, sentida. E muito, muito mais ritmada do que a minha.

segunda-feira, novembro 24, 2008

Caras vizinhas

Manhã de sábado. Biquíni, ramelas, cabelos desgrenhados. Um café na Achada de Santo António, onde fica a minha casa. E caras vizinhas.


sexta-feira, novembro 21, 2008

Morabeza

Às 8h e pouco da manhã já entrava pela janela do meu quarto o barulho da sala de aula. Vesti-me e desci. O portão da entrada, grande, castanho-ferrugem, estava aberto. Ao segundo portão, que estava trancado, veio Alice, coordenadora da escola.
Encontrei o sorriso do costume. “Entre, temos todo o gosto. Esta é a sala da 5ª classe.” Senti-me cercada de olhares curiosos.
Eram exactamente quarenta e quatro olhos grandes, negros e irrequietos. Os miúdos arrastaram as cadeiras e puseram-se de pé, para soltarem, num coro ensaiado, entusiasmado e em uníssono: “Muito bom dia! Bem-vinda à nossa escola!”
As perguntas começaram em catadupa: “Quem é? O que está cá a fazer? De que país veio?, e tudo, e tudo, aos tropeções. Expliquei à pressa, sorri, acenei e saí, com a promessa de que voltaria depois, para lhes fazer algumas perguntas.
“Joana!”, chama uma figura a dar-me pelo ombro, com pele clara, sardas e dentes desalinhados, em passos apressados na minha direcção. “Nós também queríamos fazer-lhe umas entrevistas. Pode ser agora?”

Olhei para o professor, lá ao fundo, como quem pergunta se não incomoda. “Eles têm tantas coisas para lhe perguntar, só posso deixá-los aprender.”
E tinham. Sentados no chão, em círculo, perguntaram tanto que não fui capaz de articular uma só pergunta.
“Como é o teu país? Como são as pessoas? Onde moras tu? O que é que se come lá? Qual é a tua cor favorita? Achas que aqui está frio? Qual é o teu prato favorito? Quantos anos tens? Por que é que quiseste ser jornalista?”
- “Quis ser jornalista por ter vontade de perguntar tudo e de contar as estórias e a história das pessoas de verdade, como vocês. E porque achei que fazia muitas perguntas. Afinal não faço tantas assim.”
“Por que é que vieste para Cabo Verde? Queres que te ensinemos a falar crioulo? O que é que já sabes dizer? Quantas ilhas visitaste? És vegetariana?( “Eu também tenho pena dos bichos, mas é para matar. Quando é para comer passa-me.”) Podes ficar para ver o nosso jogo de futebol? Podes tirar-nos fotografias? Quantas modelos profissionais há em Portugal?”
E mais, e mais e mais. Sempre atentos, de braço no ar, até à última dúvida.
Recreio. Doces, o sol enorme em cima das nossas cabeças e morabeza. Morabeza.
- “Vê se gostas. É a minha cor favorita.”
Uma pulseira cor-de-rosa, com uma fivela.
- “Ela gosta é de azul!”
Um anel da Barbie, enorme e com brilhantes.
- “Mas amarelo também é bonito.”
E mais um igual, em amarelo.
E eu sem jeito e já sem mãos para tantas prendas. Rebuçados, chocolates, pipocas e uma felicidade que não posso dizer com palavras.
- “Mesmo que não comas o caramelo todo, come pelo menos metade, vá!”

Senti uma vergonha imensa da Joana de 10 anos, que jamais poria nos dedos de outra pessoa um anel da Barbie. Ainda por cima da Barbie. Que nunca olhava para o lado enquanto comia um doce, não fosse alguém querer provar. E que, fazendo isso, nunca, nunca teria aquele sorriso sincero na cara.
Mas não se agradece. É morabeza. É cabo-verdiana como a saudade é portuguesa, cabe mal nas traduções. Sente-se, não se diz. Dá-se para fazer alguém feliz.
- “A minha pulseira diz love. Alguém sabe o que quer dizer?”
- “Sabemos dos filmes. Não temos inglês.”
- “Não temos formação para dar aulas de inglês aos miúdos. Gostavamos muito, mas não podemos”, explica-me Paulo, 33 anos, professor da turma.
Nunca tinha visto miúdos tão entusiasmados com a ideia de terem mais um disciplina e mais trabalho.
- “Queremos aprender, claro!”
E palmas, e saltos, e gritos. E planos para o que fariam se soubessem a língua dos filmes. Agora, às segundas e sextas há aulas de inglês na Escola Básica da Terra Branca.
- “A Joana vai ser nossa professora? Vai ensinar?”

- “Mais ou menos. Vou ser professora, mas mas não vou ensinar; vou aprender. Morabeza.”

quarta-feira, novembro 19, 2008

Areia nos pés

Praia di mar. Prainha.

terça-feira, novembro 18, 2008

As caras dos dias a seguir ao primeiro

A vista do restaurante Nova Luar, na Terra Branca.

E mais caras da terra.