domingo, agosto 24, 2008

Maria.

Maria Gertrudes e mais nomes ditos depressa, a seguir. Não consegui decorá-los, com a pressa de saber outras coisas, e a imprudência da pressa. Sempre a pressa.

Uns olhos azuis-água. Claros. Um cabelo arrumado, sem cor. Com um risco ao meio. Cara clara, comprida e boca sem dentes. Um corpo franzino, de mulher de fibra.

«Não foi a menina que um dia me deu um número de telefone e que me disse que eu tinha sido enviada pelos anjos?»

Não era eu, de todo. Eu estava por acaso , de passagem naquelas escadas. Doeu-me no peito a frieza com que todos passavam os degraus sem passarem os olhos por ela. E sentei-me a ouvi-la. Sem pressa, sem a minha pressa.

Maria estava de meias, verdes, grossas, a destoar com o tempo que as roupas dos outros diziam que estava cá fora. Tinha descalçado os sapatos e tinha as pernas meio cruzadas. Não estava sempre ali a pedir. Ligava a senhoras amigas e iam pedir a sítios diferentes. Contou-me, num discurso organizado, que os lares de idosos a maçam e que não sente na cabeça os setenta e cinco anos que já viveu.

«Acordo e só penso em vestir-me para sair, em ficar bonita.»

E estava. Linda.

«Mas há dias em que me sinto gasta, sabe? Precisava de uma escola, para pôr a cabeça a pensar noutras coisas, às vezes ponho-me a pensar nos problemas e fico, fico... E não gosto de voltar a casa. Tenho sempre uma grande solidão comigo.»

Contei-lhe que a solidão também traz liberdades, e que, vivendo sozinha, nunca precisa de dar cavaco a ninguém sobre nada. Nunca tem que ceder. Sorriu, subiu o olhar, pensativa, e concordou comigo.

Mas era uma mágoa grande, a que a vida lhe tinha deixado. Quatro filhos e uma neta criados – «A Paula, a minha Paula. Ainda esta semana me veio ver, me pagou o pequeno –almoço». A Paula dela e um brilho nos olhos. – e uma casa vazia, num bairro lisboeta, à sua espera, todos os dias.

O dinheiro falta-lhe, claro. Trabalha desde os oito anos de idade, quando começou «a servir em casa de gente alta, muito alta, deste país», e ganha cento e cinquenta euros de reforma.

«Peço porque preciso de dinheiro, claro. Porque não me chega. Vivo sozinha, tenho que pagar as minhas contas. Mas o que me dói mais, mais do que tudo, é não ter quem me dê um abraço. Muito poucas vezes tenho um carinho. Uma moeda é fácil de arranjar.»

Abracei-a com força e dei-lhe um beijo, que ela retribuiu. A partir desse abraço – acho que mesmo antes, bastante antes dele – fiquei amiga da Maria. Mas como os garotos pequenos ficam namorados uns dos outros, em segredo.

Levantei-me para apanhar o metro, que estava a chegar. E despedi-me de fugida, como se faz para não custar tanto. Voltei com as pernas a tremer, de coisas do coração e de vergonha pela minha impotência. Gostava de ter feito tão bem à Maria como ela me fez a mim.

Não fui, de facto, eu que lhe disse que ela tinha vindo com os anjos. Mas talvez perca a vergonha e lho diga quando voltar a vê-la.