quinta-feira, outubro 30, 2008

No Sado, com tudo.

Ficam os apontamentos de uma viagem com vida, para a vida. Aqui o vídeo.

E o texto completo, para os que tiverem paciência. As fotografias, como os doces para a minha avó, para desagoniar.

Vão dez num barco. Quase tudo mulheres, "que os homens não servem tão bem para isto." Usam chapéus de palha, todos com uma fita de cetim. Calçam galochas verde-garrafa. Vestem roupas velhas. Estas mulheres têm entre cinquenta e sessenta anos e a pele queimada pelos ares do mar. Vieram aqui fazer o que é hábito duas ou três vezes por semana, há 25 anos. Apanhar minhocas. As últimas deste ano.

São oito da manhã e as nuvens estão baixas, à beira do estuário do Sado. Elas chegam em grupo, numa tagarelice incessante. Numa boa disposição por contágio. Equilibram o peso dos ancinhos que trazem numa mão com o peso dos baldes que trazem na outra.


“Apanhamos minhocas aqui no estuário para servirem de isco para pesca. É um isco muito apreciado, o ganso. Vendemo-las, por 23 euros o litro, a uma empresa que as revende por todo o país ou as exporta para Espanha, França e para Itália.”, explica Manuel Ribeiro, 58 anos, o único homem a bordo. “As minhocas que vão para fora são sempre as melhores, porque aguentam mais tempo vivas dentro da caixa. E o isco quer-se vivo, claro está. Morto apodrece e é prejuízo.”, acrescenta.

Traz vestida uma camisola grossa, de flanela, aos quadrados. Tem um ar tranquilo, pouco cabelo e um nariz adunco. Manuel gere este negócio desde sempre, e conta com o trabalho “deste pessoal que aqui vem hoje.”

“A minhoca só se apanha durante os meses de sol. Outubro é o último mês em que vimos para o mar. Depois, só para o ano. Apanhamo-la durante a maré baixa, e estamos sempre dependentes do tempo. Se o mar estiver bravo não vimos. Fazemos isto entre três e quatro vezes por semana.”, diz.

Os homens não servem tão bem para isto

“Aqui são as mulheres que apanham a minhoca. Os homens não servem porque não.”, remata Manuel.

As mulheres entram no barco em fila e vão-se arrumando como podem. Depois de levantar âncora, e até chegar ao local da apanha, come-se. Em menos de nada há quase mais baldes de farnel do que as mãos que havia para os trazer. “Isto quem vai ao mar avia-se em terra, filha!” E aviou-se. Sacos plásticos aos molhos, facas, patés, geleias. Pão às fatias toscas, cortadas ali. Carcaças com tudo, embrulhadas em guardanapos. E as fomes dos ares do campo.

De barriga cheia, em três tempos põem a funcionar uma linha da montagem. As caixas de papel, onde hão-de seguir as minhocas, são agrafadas ali, durante o caminho, e no destino, enquanto se espera que a maré desça.

“Isto aqui é gente de muito trabalho. Por isso é que a gente temos os ossos todos lixados.” Maria Valentina da Cruz tem 52 anos e, por agora, um cabelo desgrenhado, que tenta prender com um gancho de mola, no alto da cabeça.

O número de caixas que se fazem é variável. “Ontem, por exemplo, fizemos quinhentas. É um instante, não custa nadinha.”, garante Maria Augusta Félix, 68 anos. “E não fazemos mais hoje porque se acabaram os agrafes.”, acrescenta.

A viagem vai a meio. De longe deve ouvir-se um galinheiro. Não são muitas mas são mulheres; os timbres das suas vozes são agudos e o ritmo a que falam é apressado. Não há ordem nenhuma na ordem em que contam as coisas. Ou há: a vez de uma falar é a vez de falarem todas ao mesmo tempo.

Maria do Rosário Martins, de 60 anos, traz na cabeça um lenço vermelho, por baixo do chapéu, e garante que vir ao mar é uma terapia. ”Uma diz uma asneira, outra diz outra e ficamos curadas para o resto do dia. Não precisamos de psicólogos.”

Começa a apanha

Âncora ao mar, barco parado. “Agora espera-se que a maré vaze e começa-se a apanha.”, esclarece Manuel. “De cada vez que vimos ao mar, e considerando este número de pessoas que trago hoje, apanhamos entre vinte e trinta litros. Já chegámos a apanhar cinquenta.”, garante. “Depois de sairmos daqui lavamos a minhoca, escolhemo-la e pomo-la em caixas, com uma medida. Ficam numa cama que eu faço com terra, papel higiénico e outros nutrientes, para se manterem vivas. A uma temperatura boa, aguentam até uma semana nas caixas.”

“Mas não apanhamos tantas como apanhávamos há alguns anos. Temos muitos problemas com a poluição. As minhocas dependem da ostra, que é um animal muito sensível. Se a poluição aumenta, a ostra desaparece, e as minhocas vão também.”, conclui.

Na outra ponta do barco, as mulheres fazem os últimos ajustes ao material. Forram os chapéus com sacos de plástico “por causa do sal” e, diz Maria do Rosário, “para evitar a zoada na cabeça.”

As galochas ficam por fora das calças, as luvas precisam de ficar bem apertadas, por cima das mangas, e presas. “Estas são as melhores, descobriu a minha Cidália no Minipreço.”, desafia Valentina, enquanto olha com orgulho as suas luvas cor-de-rosa.

Cada uma tem o seu ancinho. Nos pés levam “patilhas, para não se afundarem no lodo.” São quadrados de madeira com uma tira em cabedal no centro, onde fica preso o pé; como um pedal de bicicleta grande demais.

As mulheres vão saindo, enquanto argumentam, em várias direcções, e sem que se oiçam umas às outras, que vão para a direita ou para a esquerda, “porque ali há melhor minhoca.”

O barco balança quando Valentina se levanta. As outras encolhem os ombros e sorriem, quando ela resmunga. Tem olhos pequenos, castanhos, rasgados e uma voz forte. Fala sem cerimónias ou delicadezas. Vai para longe porque “o Manel não parou o barco no sítio certo. Ali ao fundo é que há boa minhoca.”

Em menos de nada a água vai. A maré fica vazia e o cheiro intensifica-se.

As minhocas apanham-se em duas horas. Ou melhor, tem-se duas horas para se apanhar tantas quantas se conseguir. Escavam o chão, remexem o lodo e “escolhem a minhoca mai’ grossinha”, que põem no balde.

Manuel explica ainda que o destino das minhocas depende do seu tamanho. “Só as maiores é que vão para o estrangeiro, porque se aguentam mais tempo vivas dentro das caixas.”, diz.

Segunda muda de roupa

A água volta, vai levantando o barco e põe as mulheres ao caminho. Trazem metade do lodo do estuário do Sado no corpo: dos pés à cabeça. Tiram a primeira muda de roupa, lavam-na na água que já cincunda o barco e arrumam-na, torcida, em baldes.

“Agora a gente despe-se. Não podíamos ficar todas molhadas. Tiramos esta roupa e ficamos já todas lindas.”, diz Maria do Rosário, enquanto desvia o olhar para Maria Augusta.

“Augusta, limpa-me essa boca, que ainda estás cheia de baton!”, troça. “Sabes que gosto de estar sempre bonita.”, responde imediatamente Maria Augusta, enquanto usa a camisa molhada para se limpar.

Valentina é a última a entrar no barco. Afinal, reconhece, “aquele sítio não prestou para nada”. “Apanhei muito pouco.”, confessa, para imediatamente se indignar: “Mas tu já estás a encher a mula? Arre!” E volta ao cabelo desgrenhado: “Não corto o cabelo antes de ir para a Inglaterra ter com a minha Cidália. Tenho medo que fique mal.”

Quando a maré sobe, Manuel levanta a âncora. Começa a viagem de volta. E repete-se tudo, mas com roupas diferentes e com minhocas nos baldes. Há pão com geleia, pão com paté, bolachas, uvas, maçãs, ameixas e bocas cheias de comida.

Trocam-se farnéis e receitas.

- “Olha-me para esta marmelada. Está light! Ficou com tão pouco doce! Prova!”
- “Você fez isso na pressão?”
-“Pois.”
- “Mas o marmelo feito na pressão fica encarniçado.”
- “O meu não fica! Está a ver isto encarniçado? E fiz na pressão. E está uma maravilha, a minha marmelada!”
- “Mas escute lá, fez na panela fechada?”
- “Ah, que disparate! Não, claro que não!”

Gargalhada geral. E Valentina, numa gargalhada forte, enquanto retoma a tarefa de compor o cabelo com o gancho, acrescenta: “Na’ liguem, que isto é só velhas parvas; é só parvidade!”
A notícia era a ida de Valentina a Inglaterra. À Inglaterra da sua Cidália, a que descobriu “as melhores luvas de borracha no Minipreço.”

“Fui à Inglaterra e não me perdi, mesmo sem saber dizer uma palavra de inglês.”, orgulha-se.

“Deves ter ido dizer uma data de palavrões aos ingleses!”, desafia Maria Augusta.

“Como é que eu posso dizer grandes palavrões? Eu sou maior do que qualquer palavra!”

E perde-se nas gargalhadas, cheias, fortes, estridentes. A conversa dispersa. E vão falando sobre as vidas alheias. Valentina insiste que o Ferro Rodrigues foi Primeiro-ministro, defende que a filha dele é uma histérica. Aquele andou com aquela, ela fez assim ao outro...

Vê-se o Moinho da Mourisca cada vez mais perto. O barco entra na terra no mesmo sítio em que saiu.

As mulheres voltam para casa com o rebuliço da manhã na cabeça. Ficam assim, garantem, até à próxima ida ao mar.

Manuel vende cerca de 10 mil litros de minhocas todos anos. As de hoje, que “são mai’ grossinhas”, chegam a Itália dentro de poucos dias, arrumadas em caixas, para enganar os peixes.

domingo, outubro 19, 2008

Artesão, poeta e assim

Tinha quatro anos quando fez a sua primeira cadeira. Como hoje, já com «setenta e oito anos e meio», usou madeira e palha. E hoje, como naquele dia, não conseguiu tirar as mãos da obra enquanto não a terminou.
Chama-se Manuel José Lucas. Nasceu em Évora, foi criado na Casa Pia e foi artesão porque não podia ir para padre, «por causa das miúdas e por causa de tudo.»

Está sentado num banco que tem ar de estar perto da sua idade. À sua volta tem quatro das muitas cadeiras - «uns milhares» - que fez em toda a sua vida. Uma delas está ainda por terminar. «É uma encomenda, já tenho dias em que me custa despachar tudo.», murmura, com com uma palha na boca, por cima dos óculos.
«Fiz a primeira cadeira para ajudar o meu pai. Pelo caminho quis ser jornalista, mas quando
percebi que era preciso estudar, preferi ser artesão. E fui. E sou.»

Faz uma cadeira em três ou quatro horas. Nos seus «tempos de homem novo, nunca levava mais de duas horas em cada uma. Era sempre a aviar.»

Conhecer a fundo o teclado

Foi sempre dinâmico, garante-me. E prova-o, com a força toda posta na expressão: «Andei por muito mundo. Fiz cadeiras destas no Brasil e em Angola. Vou voltar para o Brasil um dia destes. Lá sou praticamente doutor.»

O senhor Lucas está a aprender informática para «conhecer a fundo o teclado. A seguir ao teclado chego-me à gramática e depois vou-me aos números.», assevera, decidido, para acrescentar, com o dedo em riste: «É que se o indivíduo vai à macacada da Internet primeiro, depois já não aprende mais nada.»

Numa caixa de fósforos

Lucas mantém-se alheio à barulheira dos que subiram hoje, por ser um dia especial, à Praça D. Dinis, em Ourique. Não se incomoda com o aparato, não se sente mais especial por ser o mais especial da tarde, e vai tecendo a vida que passou, franzindo a cara quando não ouve bem uma pergunta.

«A minha família cabe numa caixa de fósforos. Aliás, é aí que a tenho toda.», conta. Distrai-se da sua obra apenas quando passam garotos, que o cumprimentam, sem excepção.

Artesão, poeta e assim

«Faço poemas. Quer dizer, improviso. Isto são improvisações.», diz, numa timidez que ainda não lhe tinha percebido, e segue:

Quando chega as tantas da madrugada, e não me dá o sono,
Levanto-me da cama e vou ligar a televisão
Vou ver aquele lindo programa da Tânia e do João Baião!»

Esta tarde, em frente à ireja de Ourique, as coisas são um bocadinho diferentes.

«Senhor Lucas, podemos? É que o João e Tânia estão à espera.»
«Vá lá ver, então.»

Lucas levanta a cabeça, sorri para a câmara, sem parar de dar voltas à palha, no assento da cadeira que lhe sai das mãos.

Antes de brilhar para todo o país dá-me mais dois segundos de atenção: «Falamos a seguir, menina. A televisão está cá; hoje eu é que vou fechar o Portugal no Coração!»