domingo, outubro 19, 2008

Artesão, poeta e assim

Tinha quatro anos quando fez a sua primeira cadeira. Como hoje, já com «setenta e oito anos e meio», usou madeira e palha. E hoje, como naquele dia, não conseguiu tirar as mãos da obra enquanto não a terminou.
Chama-se Manuel José Lucas. Nasceu em Évora, foi criado na Casa Pia e foi artesão porque não podia ir para padre, «por causa das miúdas e por causa de tudo.»

Está sentado num banco que tem ar de estar perto da sua idade. À sua volta tem quatro das muitas cadeiras - «uns milhares» - que fez em toda a sua vida. Uma delas está ainda por terminar. «É uma encomenda, já tenho dias em que me custa despachar tudo.», murmura, com com uma palha na boca, por cima dos óculos.
«Fiz a primeira cadeira para ajudar o meu pai. Pelo caminho quis ser jornalista, mas quando
percebi que era preciso estudar, preferi ser artesão. E fui. E sou.»

Faz uma cadeira em três ou quatro horas. Nos seus «tempos de homem novo, nunca levava mais de duas horas em cada uma. Era sempre a aviar.»

Conhecer a fundo o teclado

Foi sempre dinâmico, garante-me. E prova-o, com a força toda posta na expressão: «Andei por muito mundo. Fiz cadeiras destas no Brasil e em Angola. Vou voltar para o Brasil um dia destes. Lá sou praticamente doutor.»

O senhor Lucas está a aprender informática para «conhecer a fundo o teclado. A seguir ao teclado chego-me à gramática e depois vou-me aos números.», assevera, decidido, para acrescentar, com o dedo em riste: «É que se o indivíduo vai à macacada da Internet primeiro, depois já não aprende mais nada.»

Numa caixa de fósforos

Lucas mantém-se alheio à barulheira dos que subiram hoje, por ser um dia especial, à Praça D. Dinis, em Ourique. Não se incomoda com o aparato, não se sente mais especial por ser o mais especial da tarde, e vai tecendo a vida que passou, franzindo a cara quando não ouve bem uma pergunta.

«A minha família cabe numa caixa de fósforos. Aliás, é aí que a tenho toda.», conta. Distrai-se da sua obra apenas quando passam garotos, que o cumprimentam, sem excepção.

Artesão, poeta e assim

«Faço poemas. Quer dizer, improviso. Isto são improvisações.», diz, numa timidez que ainda não lhe tinha percebido, e segue:

Quando chega as tantas da madrugada, e não me dá o sono,
Levanto-me da cama e vou ligar a televisão
Vou ver aquele lindo programa da Tânia e do João Baião!»

Esta tarde, em frente à ireja de Ourique, as coisas são um bocadinho diferentes.

«Senhor Lucas, podemos? É que o João e Tânia estão à espera.»
«Vá lá ver, então.»

Lucas levanta a cabeça, sorri para a câmara, sem parar de dar voltas à palha, no assento da cadeira que lhe sai das mãos.

Antes de brilhar para todo o país dá-me mais dois segundos de atenção: «Falamos a seguir, menina. A televisão está cá; hoje eu é que vou fechar o Portugal no Coração!»

1 comentário:

Anónimo disse...

Salam Alekoum Habibti!

Pela primeira vez, vou comentar o teu blog, e só para dizer que é bom ter a Joana de volta.

É bom ler-te e conhecer pessoas interessantes tendo-te como intermediária.

Beijo.

Vitor, o Teu.