sábado, dezembro 25, 2010

O acampamento de Sem Terra 08 de março está “na luta”, ao sol, por um pedaço de terra

O acampamento 08 de março, de militantes do Movimento dos Sem Terra (MST), está na berma de uma estrada a vinte minutos da cidade de Corumbá, no Estado do Mato Grosso do Sul, “na luta”, ao sol, “à espera de uma pedaço de terra para cultivar”.


As cerca de 60 famílias de militantes do MST estão acampadas no chão vermelho da berma de uma estrada que conduz ao Pantanal há mais de seis meses. Todas têm casa a poucos quilómetros, nas cidades de Corumbá e de Ladário. Há tendas improvisadas com troncos finos e lençóis de plástico preto grosso e duas bandeiras hasteadas: a do Brasil e a das ideias.

Há jerricãs, cavalos, cães e galinhas. Há militantes de pele morena e chinelos nos pés, uns a trabalhar, outros à sombra, a conversar e a beber tereré [uma bebida de origem guarani, feita com a imersão da erva-mate].

Miriam e Anderson são coordenadores do acampamento. A mulher explica que “até chegarem onde querem chegar, as famílias [aqui representadas] têm que passar por um processo doloroso, longo, por muitas dificuldades”.

O homem – rapaz, ainda – fala pouco, mas ela fala por ele: “Tenho sete filhos, nenhum deles aqui comigo. Deixei a minha família para estar aqui. Esta é minha nova casa. Não temos crianças na comunidade porque ainda não conseguimos organizar-nos para que os meninos possam ter aulas”, explica.

São eles a voz desta “família grande que se juntou na luta”. Têm a tarefa de dialogar com a autarquia e com outras entidades para conseguirem benefícios para a comunidade. São eles que vão articular-se com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária até que se encontrem na região fazendas que possam ser desapropriadas e divididas em parcelas de terreno, que serão distribuídas pelos militantes e depois cultivadas. O processo pode demorar entre um e cinco anos.

Pelas contas do MST, existem pelas bermas das estradas do Brasil 90 mil comunidades com esta.

A coordenadora explica ainda que “há alguns militantes que trabalham na cidade e só vêm ao acampamento quando têm folga e outros, como é o seu caso, que permanecem e vivem com a cesta básica de alimentos que o Governo dá”.

Estar aqui, diz, “é maravilhoso, os dias são gostosos”, e é imprescindível: “Tem que ficar aqui, não tem que abandonar, tem que correr atrás até conseguir. Esse é o objetivo”, acrescenta.

Sentado num banco baixo, sem costas, Elisiomar Rodrigues da Silva conta que nasceu e cresceu numa fazenda: “Vim para aqui por causa da falta de emprego na. As máquinas estão a tomar o nosso espaço na fazenda, a empurrar-nos para a cidade”, diz. Tem cinco filhos entre os nove e dois anos. A família não está no acampamento e Elisiomar sente saudades mas está certo de que se não for ele a lutar pelos filhos, não há quem lute.

O seu objetivo é “arrumar uma terrinha para criar as crianças sem depender dos outros”: “O lucro que a gente dá para o patrão é o prejuízo que a gente toma, que a gente sai de madrugada e não tem horário para voltar”, considera.

Quando tiver um pedaço de terra vai “plantar uma mandioca, um milho, um feijão, que é a comida do pobre. Mas sem depender de patrões porque só nos querem enquanto temos saúde. Quando se perde saúde deixa-se de se ser bom”.

No acampamento, garantem, “é tudo gente humilde”, que precisa de terra, que quer trabalhá-la.

Deuvek é camponês e vai licenciar-se em Geografia na escola do Movimento dos Sem Terra

Deuvek Mateus, 52 anos, é camponês, militante do Movimento dos Sem Terra (MST), e vive há 26 anos num assentamento que ajudou a erguer depois de ocupar o terreno com outras 300 famílias. Tem cinco filhos, todos licenciados. Agora foi a sua vez de vir à escola.


O camponês está na Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Sem Terra, a fazer uma licenciatura em Geografia. O curso é uma parceria entre a escola do MST e a Universidade Estadual Paulista e é reconhecido pelo Governo brasileiro. Deuvek Mateus escolheu Geografia por considerar que “as disciplinas se ligavam ao [seu] percurso dentro do movimento e seriam úteis à comunidade” em que vive: “Interessam-me sobretudo as questões relacionadas com organização dos assentamentos [cooperativas plurifamiliares de produção agrícola]”, conta.

Durante cinco anos, o tempo da licenciatura, Deuvek vai dividir-se entre “tempo escola” e “tempo comunidade”, tempo da teoria e tempo da prática. “Chama-se pedagogia da alternância, assim o conhecimento flui e cresce”.

Este camponês passou, com a sua família, pelo processo que as mais de 90 mil famílias acampadas à beira de estradas por todo país esperam passar. Hoje, diz, as 300 famílias do assentamento em que vive “estão numa fase bastante consolidada”.

“É uma comunidade organizada do ponto de vista social. Apesar de cada uma ter a sua área para produzir há todo um processo de cooperação na vida social, e também na produção. Os trabalhadores utilizam equipamento coletivo e planeiam a produção em conjunto”, conta.

As famílias já construíram as suas casas, existe um posto de saúde, energia elétrica, e produz-se feijão, arroz, milho, verduras, frutas e leite. Além de garantir a subsistência das 300 famílias da comunidade, a cooperativa agrícola coloca produtos no mercado e gera receita.

Antes de chegar aqui, “a vida da comunidade foi dura”. O camponês passou vários anos sem ter dinheiro para comprar sequer um chocolate para os filhos. Não se arrepende. Acredita que é na reforma agrária que está a chave para o desenvolvimento do Brasil.

Deuvek defende que a ocupação de terras é uma ação política, organizativa e socioeconómica. E explica: “Podemos dizer que é uma ação do ponto de vista político, porque questiona o latifúndio, que é uma ação organizativa, porque é daí que nasce a organização, mas também que é uma ação do ponto de vista socioeconómico, porque responde às necessidades básicas das famílias e dos trabalhadores sem terra do Brasil”.

Não há, argumenta, outra forma de o país avançar: “Só a reforma agrária vai permitir resolver os problemas estruturais do Brasil como o desemprego, a falta de alimentos e a questão ambiental”.

terça-feira, dezembro 21, 2010

Na escola dos Sem Terra o camponês é doutor e revolucionário

Na escola nacional Florestan Fernandes, em São Paulo, o Movimento dos Sem Terra (MST) dá a milhares de camponeses militantes uma oportunidade que lhes foi negada durante gerações. Nesta escola o camponês estuda para ser doutor e revolucionário.


A escola fica a mais de uma hora de carro do centro de São Paulo, em Guararema. Em seis anos de passaram por aqui mais de 16 mil pessoas, entre alunos e professores, todos voluntários.

O espaço é amplo, desenhado em linhas retas e cores claras, arejado, arrumado. Há silêncio e cheira ao verde que há à volta. Pelas paredes, entre os pátios, há espaços de reflexão, poemas, fotografias, palavras de ordem. Bertolt Brecht, José Saramago, Sebastião Salgado, Karl Marx.

Nas salas de aula há janelas compridas, cheiro a giz, cadeiras vermelhas e revolução posta nas toalhas da mesa dos professores e pregada no quadro de cortiça que fica nas costas dos alunos.

Aqui, explica o porta-voz do MST João Paulo Rodrigues, acontece um processo de lapidação política teórica, curricular, que se espalha por todo o país. A escola é um método político de formação e de educação do movimento nacional e de outros movimentos sociais nacionais e internacionais”.

Maria Goreti, membro da direção da escola, explica que “neste espaço milhares de sem terra podem ter acesso a educação, que foi historicamente negada aos camponeses e à classe trabalhadora”.

A dirigente diz ainda que quem aqui estuda “apropria conhecimento para caminhar num processo de emancipação, de libertação”: “As pessoas vêm aqui estudar e depois regressam às suas áreas de assentamento [cooperativas plurifamiliares de produção agrícola] e aplicam no campo brasileiro aquilo que aprenderam”, conta.

Acrescenta que “os eixos de conhecimento aprofundados na escola estão ligados à História, à Filosofia, à Teoria da Organização, – onde entram as lutas da reforma agrária e também os processos de agroecologia – à questão agrária e à luta dos camponeses da classe trabalhadora”.

E há também “temas transversais a estes eixos, como a Cultura, a Literatura, as Artes, ou as relações entre homens e mulheres”: “A escola propõe também uma forma diferente de nos relacionarmos, que não está vinculada a uma visão de mercadoria, que vê o ser humano numa perspetiva livre”, diz.

Na Florestan Fernandes não se vai às compras. Vive-se, diz-se por aqui, de trabalho e de solidariedade. As tarefas dividem-se – todos fazem tudo –, come-se o que a terra dá e recebe-se alguns excedentes de assentamentos próximos. Hoje o almoço é arroz, feijão, farinha de mandioca, salada de alface e tomate e três cubos de carne por pessoa.

A frequência das aulas é gratuita mas os alunos assumem que o que levam daqui tem que ser semente para germinar na terra e voltar à casa: “Você tem um compromisso com a comunidade, com o movimento social a que pertence ao aprender conhecimentos aqui. Esses conhecimentos têm que retornar”, explica Maria Goreti.

Na verdade, percebe-se nas palavras de todos, a escola é apenas o espaço onde se faz formação. O movimento real, a transformação do conhecimento – a revolução – germina aqui mas acontece na terra.

quinta-feira, dezembro 16, 2010

Os netos dos escravos veem um Brasil com racismo velado e cinco séculos de problemas por resolver

A comunidade do quilombo do Campinho da Independência, onde vivem 450 descendentes de escravos negros brasileiros, perto de Paraty, no estado do Rio de Janeiro, aplaude o Presidente Lula mas defende que os negros do Brasil ainda não são livres.


Os 13 núcleos familiares que se distribuem pelos cerca de 280 hectares de terra do quilombo são todos descendentes de três escravas negras que vieram, no século XIX, trabalhar para uma fazenda: A vovó Antonica, a vovó Camila e a tia Maria Luísa.

As crianças que correm no pátio perto da associação de moradores no intervalo das aulas são a sexta geração deste quilombo.

À volta é tudo verde, fresco. Os caminhos são de terra. Da tradição pouco sobra para além da cor da pele de quem aqui vive, da forma do artesanato e da casa onde ele é vendido. A maioria das famílias vive em casas de tijolo sem acabamentos e com antenas parabólicas.

A escola e a igreja são construções convencionais. Antes de se chegar ao campo de futebol de terra batida há um pedaço muro onde desenharam um negra com um filho perto e onde escreveram: “Eu peço a Deus que ilumine minha comunidade trazendo mais cultura e menos malandragem”.

Wagner do Nascimento, ou Waguinho, presidente da associação de moradores, conta que “depois da conquista da terra [o Campinho obteve a titulação coletiva das suas terras apenas em março de 1999, depois de mais de 30 anos de luta], a luta é para frutificar”.

O desafio do quilombo hoje é “desenvolver a comunidade com base na agricultura familiar, no artesanato, no manejo dos recursos naturais conscientes e promover a sustentabilidade do grupo”, diz.

Metade das pessoas do quilombo vive das atividades comunitárias que aqui se desenvolvem, do cultivo da terra ao restaurante, passando pela casa da farinha ou pelas guiadas a turistas.

Esta terra dá, garante Waguinho, “antes de comida, liberdade, porque não há cercas, não há muros. A terra permite à comunidade relacionar-se com a Mata Atlântica e isso ajuda o nosso trabalho sócio-ambiental”.

O presidente da associação de moradores considera que a luta tem sido grande, mas reconhece que as conquistas também: “A comunidade tem-se desenvolvido bastante. Hoje temos saneamento básico e, embora a energia elétrica não seja a 100 por cento, já chega a algumas casas”, diz.

Mais de metade da comunidade vive desta terra e quem trabalha fora, acrescenta Waguinho, “está a organizar-se para encontrar formas de trabalhar aqui”.

O quilombo é porta para a liberdade e arma para a luta contra a discriminação: “A população negra foi sempre a mão-de-obra do desenvolvimento do Brasil, muitas vezes escrava. E o nosso grande desafio é que isso mude. Queremos combater o racismo velado que existe no Brasil. Queremos o desenvolvimento a partir do nosso conhecimento, da nossa história de luta”, defende.

Wagner do Nascimento diz que “houve alguns avanços” durante os dois mandatos do Presidente Lula da Silva e que no próximo domingo vota “na continuidade” [Dilma Rousseff, a candidata apoiada pelo Presidente sindicalista], mas aponta falhas que decorrem, considera, da impossibilidade de “em oito anos se resolverem problemas com cinco séculos”.