quinta-feira, novembro 27, 2008

Os restos da Praia

O centro da cidade da Praia é radiante, animado, revolto, desarranjado mas in, vistoso e crioulo.
Tem muito trânsito, boas estradas e pessoas bonitas, urbanas de andar dançado e quente, com um balanço de funaná nas ancas.
Tem vestidos de cores e vaidades. E mostra-se no barulho das palavras gritadas ou cantadas por todos os cantos: pelos carros, pelos bichos e pelas pessoas.

E depois do centro, a cidade da Praia tem os restos disto tudo: os feios; os desempregados; os que somaram azares e coincidências infelizes; os sujos; os que não sorriem porque já não têm dentes; os que têm as roupas rotas, sem cor; os que têm que andar descalços; e os que são tudo isto ao mesmo tempo.

Chamam-lhe bairro da Jamaica ou da ladeira do aeroporto velho.
É clandestino e nasceu há 3 anos. Fica a 15 minutos do centro da cidade. Apesar da brisa, o cheiro é isuportável. Não há água, não há luz, não há esgotos. Há uma lata que já foi de leite – num dia em que houve dinheiro para a comprar ou em que alguém veio oferecê-la – e “depois deita-se tudo nos contentores, ou no chão”, é indiferente.

A paisagem mistura o cimento das 30 casas que compõem o bairro, algumas manchas de um verde que não serve para nada, porque a terra não é fértil, e o castanho do pó que se levanta da estrada de pedregulhos e terra batida.

Passam, devagar, galinhas, vacas, bezerros e porcos cheios de carraças e tão magros como os orçamentos que estas famílias têm para sobreviver.

Guida tem cinco filhos e “um pouco de pão e água com açúcar no estômago”; a única coisa que conseguiu arranjar para comer de manhã. De resto, ou restos ou nada: Não tem cama, não tem colchão, não tem emprego, não tem fogão, não tem nenhum pedaço de terra para cultivar, não tem um negócio. Também não tem marido:“Ao menos assim não vêm mais crianças”, diz-me. Olhos negros, grandes, rasgados e brilhantes. Um corpo esguio numa camisa de mangas cavas e nuns calções largos, pretos.

Guida tem, se quiser água, uma hora de caminho pela frente: meia com o bidão vazio, na mão, outra meia com ele cheio, à cabeça. Tem sapatos, de quando em vez, se os restos forem do seu número ou de um número a mais ou a menos.

“O meu dia? Acordo, se tiver comida como. Se não, espero. Logo se vê. Umas vezes as vizinhas dão, outras vezes elas também não têm. Espera-se.”

Fala-me com calma e solta várias vezes gargalhadas. Tem um sorriso lindo, luminoso, franco. Percebe mal o meu crioulês ridículo, só tem restos de português na cabeça. Aprende a língua quem vai à escola, e sem dinheiro não se vai a lado nenhum: espera-se.

“Os meus meninos vão muitas vezes dormir com fome”, conta-me, de cabeça baixa.

Andam sempre a pé. Mas têm telemóveis: “uma vizinha deu-nos. Disse que era porque podíamos precisar de alguma coisa. Ainda não precisámos de nada de especial.”

“Não temos serviço médico porque é preciso algum dinheiro para fazer a ficha e para pagar taxas. Quando estamos doentes esperamos que passe.”

Susy é filha de Guida. Tem 12 anos e um ar doce, levemente cansado do esforço para se parecer com as meninas da sua idade. “Na minha escola não há quase ninguém que viva num sítio como este.”
Tem dois brincos diferentes, porque eram os restos do guarda-jóias que alguém lhe ofereceu. Mas não faz mal, “faz de conta que é de propósito.” Ajeita o cabelo que traz apanhado num rabo-de-cavalo e as roupas usadas, encardidas.

Está de saída para a escola, avisa que não pode demorar-se, que tem que contar com meia hora a pé.

“Hoje até acordei aborrecida. Ainda bem que vieram. Com a televisão aqui fico muito mais descansada. Sei que as coisas vão resultar. Eu hei-de sair daqui. Vou estudar para ser professora. E agora sinto mesmo que vou.“

Engoli em seco e pus a caneta no bolso.

A notícia de que a televisão está por ali corre depressa. As pessoas vão chegando, com crianças pela mão e com o melhor que têm vestido. Põem-se em fila para contarem a sua história.
São muitas caras, muitos nomes, percalços diversos mas o mesmo fim, numa esteira enxovalhada, estendida no chão de terra de uma casa ilegal, abafada e fétida. Um estômago vazio de comida e uma alma cheia de esperança.

Despedi-me com um sorriso preso, um nó na garganta e com as lágrimas suspensas pelo respeito.

Segui com tudo apertado no peito para Palmarejo Grande, a 10 minutos deste sítio, onde o primeiro-ministro de Cabo Verde, José Maria Neves, ia lançar a primeira pedra de um luxuoso e megalómano empreendimento de habitação.

“É tempo de pensar em construção de qualidade em Cabo Verde”, afirmou.
Garantiu, porém, que a habitação social “será construída numa das próximas fases do projecto de restruturação urbanística da cidade.”

Na minha cabeça, aos soluços e entre os ecos do estômago dos habitantes do Jamaica, ouvi palavras diferentes, as da vida real, saírem traduzidas da boca do chefe de Governo.
Ouvi que vai ser tudo como de costume: assim que os bonitos estiverem arrumados, arranjam-se uns restos para os feios ficarem menos descontentes e fazerem menos barulho.



quarta-feira, novembro 26, 2008

O poeta da Praia

“O que é lindo é lindo; o que é fantástico é fantástico; e o que é romântico é romântico. E este espaço é isso tudo. Fique connosco no espaço do amor.”

Voz rouca, como quem quer puxar a coisa para o sexy, boca colada ao microfone, como quem fala ao ouvido. Puro charme cabo-verdiano. Como sempre e em tudo.

Sorri e o António veio-me à cabeça. E o Rui, o Edimilson e o Valter. O José e o João. E todos os outros: dezenas. Todos na minha cabeça mais a poesia do engate cabo-verdiano.

Todas as mulheres são lindas aqui, mesmo depois de acordar, mesmo despenteadas, sujas, ramelosas, mesmo tudo. Não é difícil receber mais de três pedidos de casamento por dia.

Ser mulher branca é um bocadinho pior. É mais ou menos ser a sensação da rua em que se passa, qualquer que ela seja. É ver cabeças a girar, sentir olhares demorados, ouvir convites desaforados. E desejar, mais que nunca, ter, efectivamente, o rabo monstruoso, a cara terrível, umas pernas gordíssimas e um corpo de barril. É perdoar todas as divas da pop por serem tão lindas, porque, no fundo, ninguém merece.

Eram duas da tarde. A praia estava quase vazia e a minha hora-e-meia-duas de almoço estava quase no fim. Fui espreitar o sol e molhar os pés.

- “Olá! Como te chamas? Tens medo da água?” Figura negra, alta, encorpada. Olhos escuros e t-shirt na mão.

- “Vim só molhar os pés, vou trabalhar.” Olhei para o lado, como quem foge, entre o medo e o como-é-que-é-possível-que-as-solteironas-desesperadas-do-mundo-não-tenham-ainda-ouvido-falar-desta-libido-atlântica?

- “Não devias vir tão vestida para a praia, não é justo. És egoísta. Queres o meu calção, agora que já tens o meu coração? Assim podias mergulhar, eu ia gostar... Como é que te chamas?”

- “Não vale a pena, obrigada. Joana. Tu?” E uns passos para o lado, sem querer parecer mal educada.

- “O meu nome é ti amo, o meu apelido é ti quero, fofa. Dás-me o teu número? Acho que podíamos conversar um bocadinho, estou a sentir por ti um fraquinho.” Um balanço gingão e um piscar de olho gabiru.

- “Tenho que ir, desculpa.”

-“Ah, que chato! Dou-te pelo menos um beijinho antes de ires! Só quem gosta de verdade é que sabe o que é a saudade. És comprometida, quirida?”

- “Claro! Tenho dois namorados, pelo menos. Enormes e muito fortes.” Passos maiores para longe, mas a mão dele na minha.

- “Eu posso ser o terceiro. Também tenho duas mulheres, uma quase a ter um bebé. Vamos ser muito felizes. Queres casar? Vou saber ti’amar.”

-“Não me dá jeito, mas obrigada pela atenção.”

- “Vá lá! Eles são brancos? Deixa eles. Preto faz melhor relação do que branco. Tenho um coração grande, cabe tudo. Quando vejo uma princesa assim, fofa, o coração bate alto, alto, alto e cresce. Dá-me um beijinho, mata esse fraquinho.” Um avanço e medo, a fugir, definitivamente.

- “Adeus!”

- “Não posso te beijar? Tudo bem, não vou forçar. Vou guardar o desenho dos teus olhos para em segredo te amar.”

Quase corri para o táxi. Entrei e suspirei de alívio. O senhor respondia a tudo “oui-oui”. Um descanso. Ainda tentei perceber se falava português ou francês, ainda lhe disse que era portuguesa e jornalista. Depois desisti. “Oui-oui! Oui-oui!” Um descanso.
Cheguei ao destino ainda com aquele poeta gabiru na cabeça. Ilustração perfeita de todos os homens cabo-verdianos. Abri a porta do táxi e virei-me para receber o troco. O motorista tinha outra cara; abriu a boca toda num sorriso gigante:
- “Portuguesa, foge com mim para portugal! Por amor!”

terça-feira, novembro 25, 2008

O tempo, com muito mais tempo do que o tempo que o tempo tem

O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem. O tempo respondeu ao tempo que, em Cabo Verde, o tempo tem muito (muito, muito, muito) mais tempo do que o tempo que o tempo tem.
- “Um café, por favor.”
- “Espera um bocadinho.”
Está a chover. O Inverno da Praia cola-se ao corpo, é húmido. Não é bem chuva, é uma ameaça. É uma chuva que corre devagar. Voa, nem chega a cair. Apetece gritar-lhe para se despachar. Ela veio mas o calor não foi, ficou. Húmido e peganhento.
É o tempo que não deixa o Inverno entrar. Deixa-o tanto tempo à porta à espera, que ele acaba por só conseguir soprar uns choviscos. E vai andando, sem ter tempo de fazer o tempo frio.
Aqui a medida do tempo é a espera. Espera-se. É assim que se vive. À espera: de tudo, por por tudo, por nada, por tempo indefinido. E impassivelmente.
- “O café, ainda vem?”
- “Sim, vai. Está a ir. Espera um bocadinho.”

E um sorriso largo, sentido, de olhos rasgados.

As casas com as vergonhas à mostra, todas em cimento, esperam dias melhores; as outras –que vivem dias melhores – vestiram-se de verdes-alface e por aí acima, à espera de festa; a maior parte das mulheres espera um filho; as que os trazem pela mão esperam não voltar a engravidar; e os homens, a julgar pelos olhares lascivos, esperam todo dia pela altura de fazê-los.

-“A máquina avariou?”
-“Não, senhora. Está a ir.”

Meia volta, o rabo a gingar ao som da música.

Cá fora, as vendedoras esperam pelos clientes. Lá dentro, os comensais esperam uma hora e meia pelo almoço, se o pedirem entre um beijo e um abraço à empregada, enquanto piscam o olho à cozinheira, e, claro, se estiverem sozinhos no restaurante. À noite espera-se pelos ladrões, porque antes disso já se esperou pela iluminação das ruas.

-“Estou a ficar sem tempo, princesa Antónia. Esse café, minha querida?”
-“Sim.”
Assente e passa a mão pelo cabelo. Sorri de novo. E ginga e bamboleia-se e rebola-se. E demora-se. E demora tudo, e demoram todos.

Mas não há pressa. Ninguém suspira de despero; ninguém está atrasado, ninguém rói as unhas ou treme a perna, em bicos de pés, sentado. Há tempo. Muito tempo, tanto tempo, todo o tempo que for preciso, e ainda tempo de sobra.

O ritmo do tempo destas vidas é o compasso de uma dança vivida, descomprometida, sentida. E muito, muito mais ritmada do que a minha.

segunda-feira, novembro 24, 2008

Caras vizinhas

Manhã de sábado. Biquíni, ramelas, cabelos desgrenhados. Um café na Achada de Santo António, onde fica a minha casa. E caras vizinhas.


sexta-feira, novembro 21, 2008

Morabeza

Às 8h e pouco da manhã já entrava pela janela do meu quarto o barulho da sala de aula. Vesti-me e desci. O portão da entrada, grande, castanho-ferrugem, estava aberto. Ao segundo portão, que estava trancado, veio Alice, coordenadora da escola.
Encontrei o sorriso do costume. “Entre, temos todo o gosto. Esta é a sala da 5ª classe.” Senti-me cercada de olhares curiosos.
Eram exactamente quarenta e quatro olhos grandes, negros e irrequietos. Os miúdos arrastaram as cadeiras e puseram-se de pé, para soltarem, num coro ensaiado, entusiasmado e em uníssono: “Muito bom dia! Bem-vinda à nossa escola!”
As perguntas começaram em catadupa: “Quem é? O que está cá a fazer? De que país veio?, e tudo, e tudo, aos tropeções. Expliquei à pressa, sorri, acenei e saí, com a promessa de que voltaria depois, para lhes fazer algumas perguntas.
“Joana!”, chama uma figura a dar-me pelo ombro, com pele clara, sardas e dentes desalinhados, em passos apressados na minha direcção. “Nós também queríamos fazer-lhe umas entrevistas. Pode ser agora?”

Olhei para o professor, lá ao fundo, como quem pergunta se não incomoda. “Eles têm tantas coisas para lhe perguntar, só posso deixá-los aprender.”
E tinham. Sentados no chão, em círculo, perguntaram tanto que não fui capaz de articular uma só pergunta.
“Como é o teu país? Como são as pessoas? Onde moras tu? O que é que se come lá? Qual é a tua cor favorita? Achas que aqui está frio? Qual é o teu prato favorito? Quantos anos tens? Por que é que quiseste ser jornalista?”
- “Quis ser jornalista por ter vontade de perguntar tudo e de contar as estórias e a história das pessoas de verdade, como vocês. E porque achei que fazia muitas perguntas. Afinal não faço tantas assim.”
“Por que é que vieste para Cabo Verde? Queres que te ensinemos a falar crioulo? O que é que já sabes dizer? Quantas ilhas visitaste? És vegetariana?( “Eu também tenho pena dos bichos, mas é para matar. Quando é para comer passa-me.”) Podes ficar para ver o nosso jogo de futebol? Podes tirar-nos fotografias? Quantas modelos profissionais há em Portugal?”
E mais, e mais e mais. Sempre atentos, de braço no ar, até à última dúvida.
Recreio. Doces, o sol enorme em cima das nossas cabeças e morabeza. Morabeza.
- “Vê se gostas. É a minha cor favorita.”
Uma pulseira cor-de-rosa, com uma fivela.
- “Ela gosta é de azul!”
Um anel da Barbie, enorme e com brilhantes.
- “Mas amarelo também é bonito.”
E mais um igual, em amarelo.
E eu sem jeito e já sem mãos para tantas prendas. Rebuçados, chocolates, pipocas e uma felicidade que não posso dizer com palavras.
- “Mesmo que não comas o caramelo todo, come pelo menos metade, vá!”

Senti uma vergonha imensa da Joana de 10 anos, que jamais poria nos dedos de outra pessoa um anel da Barbie. Ainda por cima da Barbie. Que nunca olhava para o lado enquanto comia um doce, não fosse alguém querer provar. E que, fazendo isso, nunca, nunca teria aquele sorriso sincero na cara.
Mas não se agradece. É morabeza. É cabo-verdiana como a saudade é portuguesa, cabe mal nas traduções. Sente-se, não se diz. Dá-se para fazer alguém feliz.
- “A minha pulseira diz love. Alguém sabe o que quer dizer?”
- “Sabemos dos filmes. Não temos inglês.”
- “Não temos formação para dar aulas de inglês aos miúdos. Gostavamos muito, mas não podemos”, explica-me Paulo, 33 anos, professor da turma.
Nunca tinha visto miúdos tão entusiasmados com a ideia de terem mais um disciplina e mais trabalho.
- “Queremos aprender, claro!”
E palmas, e saltos, e gritos. E planos para o que fariam se soubessem a língua dos filmes. Agora, às segundas e sextas há aulas de inglês na Escola Básica da Terra Branca.
- “A Joana vai ser nossa professora? Vai ensinar?”

- “Mais ou menos. Vou ser professora, mas mas não vou ensinar; vou aprender. Morabeza.”

quarta-feira, novembro 19, 2008

Areia nos pés

Praia di mar. Prainha.

terça-feira, novembro 18, 2008

As caras dos dias a seguir ao primeiro

A vista do restaurante Nova Luar, na Terra Branca.

E mais caras da terra.





Cabo Verde inteiro numa carrinha

É domingo. Um dos do meio de Novembro. Sucopira, cidade da Praia, ilha de Santiago, Cabo Verde. Um calor peganhento.

E gente, e carros em todos os sentidos, e inversões de sentido de marcha em qualquer lado. “Há semáforos mas estão desligados”, explica o taxista. “Gastavam muita luz. E era preciso fazer muita formação às pessoas para respeitarem e pôr a polícia a castigar quem não respeitava. É mais fácil ter um polícia a coordenar o trânsito nas zonas mais complicadas.”

- “Quanto custa a viagem? Onde está o taxímetro?”

- “Não tem taxímetro. É 500$.”

Soma e segue. O táxi aqui é como os bolos da avó, a olho.

O destino é Assomada, no interior, a uns 50 quilómetros da Praia.

- “Assomada? Aqui mais barato, mais bom. Viaja aqui. Mais depressa chegar lá. Anda!”

São uns seis, munidos da persuasão de 60. São ajudantes dos carros que levam os viajantes até ao interior.

Poucas pessoas têm carro próprio. A maioria anda de autocarro, a 38$ a viagem. Os que têm pressa e dinheiro andam de táxi. Para viajar até ao interior há carros próprios, equipados com bom material e gente formada no assunto.

Com três lugares por preencher, o motorista arranca. O ajudante leva meio corpo de fora da janela: “Bu kre bai pa ‘somada? ‘somada? ‘somada?”. Acena, grita, assobia, esbraceja. Vai receber 300$ por cada carro que encher. Quando o trabalho termina, sai e segue, nunca faz a viagem até ao destino final.

A carrinha tem entre dez e 15 lugares, dependendo de quantos passageiros é preciso arrumar lá dentro. Há tábuas que fazem maravilhosamente a vez de bancos e, bem encaixadas, nem deixam que se dê pela diferença. 500$ ida e volta.

“‘somada? Bu kre bai pa ‘somada? Anda!”

A tripulação fica completa no regresso a Sucopira, depois de mais de meia hora às voltas pelo centro da cidade. Antes da partida efectiva ainda há tempo para gelados baratos, que vêm, numa geleira azul que uma senhora enorme traz à cabeça, entre o derretidos e o recongelados, colados uns aos outros.

A paisagem corre para trás, onde fica a cidade; e o campo vai chegando, muito mais verde do que o que o calor de há pouco deixava imaginar. Os dois cenários misturam-se na fente do prédio moderno onde estão três vacas a pastar. Verde, mais verde e montes a crescerem do chão.

Ao fundo, à direita, um casal acena, de sacos nas mãos: “N’kre bai pa ‘somada!”. O motorista encosta.

- “Aperta qui cabi!”

E coube. Estava lá Cabo Verde inteiro. Atrás de mim mãe e filha, “vindas da missa, do hospital e do mercado.” À frente uma história de amor com mais de 50 anos e com dez filhos.

- “Se não for com amor como é que faz filhos? E dez, ainda por cima. É amor, é muito amor. Agora também tem amor, mas já não faz mais filho.”

E a adolescente maquilhada que tinha um penteado moderno, com canudos. E miúdos pequenos a fazerem birras, e mais um homem magro e o seu primo, de boné. E os outros da frente, com quem não pude conversar pela mesma razão pela qual não pude despir o casaco: o espaço era tanto como o frio.

Mas coube tudo. Na carrinha que nos ficava justa ao corpo coube a ilha inteira mais o meu remorso por não tê-la fotografado.

segunda-feira, novembro 17, 2008

As caras do primeiro dia.

Da primeira fotografia, tirada da varanda do hotel, aos meninos e meninas que nunca tinham tocado em brancas e achavam que eramos princesas. E tinham a certeza de que eramos estranhas, porque "toda a gente sabe falar crioulo."

Capítulo 1 ou a eleição da Miss Cabo Verde

É a noite da semana. Talvez seja o evento do mês. Eles vão para vê-las. Elas – as deles – vão para terem a certeza de que eles vão mesmo só para vê-las – às outras, as do desfile – e, vão, claro, para terem inveja.
"As mais lindas não vão aparecer. Essas vivem no interior e têm complexos, são mais envergonhadas, não concorrem", explica Beto, adorável cicerone voluntário da noite.

É noite de gala no Pavilhão Desportivo Vavá Duarte, em Chã de Areia, no centro da cidade da Praia.

À porta há vendedoras dos oito aos 80 e pregões para os comes e bebes: amendoins, rebuçados, chocolates, bolachas, ponche – numas garrafas que já foram de sumo e ninguém desconfia na boca de quem – sumos, águas, cervejas...

E há saltos altos. Camisas de cores garridas e vestidos até aos pés, a cobrirem mulatas altas, lindas e produzidas para a festa.

O espaço está conforme. Há um palco com mais de um metro de altura, forrado com um tecido que só pode estar na moda. Por detrás há cortinas de cores que combinam com a diversidade cromática das vestes da audiência. É festa. Vai haver festa. Vê-se por todo o lado.

Mas vai demorando. E a espera faz-se com música: duas colunas com o triplo da altura do palco rosnam um pastiche de som comercial e crioulo.

"É que Cabo Verde é nim, não é Europa mas também não é África. Somos uma salada de frutas, em tudo; desde a música à língua, sem esquecer a maneira de vestir", explica Beto, 33 anos, designer gráfico.

O evento era coisa para começar às 21h mas não há pressa. São 23:15h e as mulheres robustas, de cesto à cabeça, entraram, calmamente, e vendem agora comida e bebidas nas bancadas.

O ambiente é de festa de família. Todos se conhecem. Quando não se conhecem disfarçam bem, sempre vestidos de um sorriso e de um balanço de dança no corpo.

"Muito boa noite! Boa noite! Muito boa noite!" Era quase meia noite quando uma senhora bem parecida, Isa e-o-resto-foi-tão-alto-e-colado-ao-microfone-que-não-se-percebeu, de ancas generosas gritou ao microfone. "Benvindos à eleição da Miss Cabo Verde 2008!"

"Aviso já este público de que não quero apupos. Os aplausos são benvindos, mas os apupos desencorajam as candidatas!", acrescentou.

Apresentou o júri e o concurso, virou costas ao público e mandou vir as meninas.

E elas vieram. Eram 13. Passaram na passerelle a dançar. Tenho para mim que a anca bem rebolada dava mais pontos. E dançavam, mexiam nas saias, flirtavam com a audiência, sorriam, faziam-se às fotografias.

E Isa ao fundo, com a cara escondida atrás de uma cábula enorme, mas com uma voz substancialmente presente, fornecia os detalhes: "Candidata número cinco, ilha da Brava, 18 anos, 1,50m de altura, 90 de anca, 76 de peito. É do signo aquário, tem o 9º ano de escolaridade, o seu estilo de homem é sincero. Nos tempos livres ela gosta de ouvir música no seu quarto. No futuro quer ser modelo. "

Há gritos, palmas, e desrepeitos à advertência de Isa: a rivalidade entre as ilhas passa o fairplay a ferro.

Entre as mudas de roupa das candidatas subiram ao palco artistas na berra, e aos berros, numa técnica que ultrapassa, pela direita e sem piscas, o playback: a música do autor é posta a tocar e ele canta por cima.

"Uma salva de palmas bem forte para estes artistas! E atenção, vem aí o traje de verão!"

Apocalipse! Traje de verão também se pode dizer todas-de-biquini. De mini-biquini. E o público aos gritos e aos saltos, de inveja e de vontades.
Desta vez o desfile é sóbrio, sem danças, mas o público não sossega. Todos discutem sobre aquela que merece a vitória. Há mesmo alguns que se aproximam da passarelle, tiram fotografias às candidatas e voltam para junto dos amigos para esclarecerem dúvidas e decidirem um voto justo.

Antes do traje de noite há "mais outros artistas" com danças e cantigas e mais danças e mais cantigas, sempre com a mesma técnica.

Há burburinho, discussão e campanha pela candidata que se defende que mais merece o título.

E houve um sono que só me obrigou a deixar a festa mais cedo e só me deixou acordar na manhã do dia seguinte.

- "Então, Beto, quem venceu?"

- "A número sete, da ilha de Santiago, acho. Mas não tenho a certeza."
- "Mas não ficaste até ao fim?"
Fez um sorriso largo, meteu as mãos nos bolsos dos calções de ganga e esticou o braço magro para chamar um táxi: "Fiquei, mas não importa. Agente nunca liga muito ao resultado."

sexta-feira, novembro 14, 2008

Ponto zero, ou malas aviadas.

A cidade da Praia é já ali. Vê-se muito bem Cabo Verde do Cristo-Rei. Até acho que Almada é um bocado mulata. Até já. E um miminho.
O texto é do Baptista-Bastos, Belarmino.

sábado, novembro 08, 2008

Preto, porco, gordo e especial.

Ourique, de novo. A vila vive a calma alentejana das seis da tarde de um sábado, que é a calma alentejana de todos os outros dias da semana no Alentejo.
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O homem tem na mão um cálice que não condiz com os seus traços e um pedaço de pão com presunto de porco alentejano.
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- “Então Zé, como é que isso vai? Esse foste tu que o engordaste. Está bom, o presunto?”
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O Zé sorri e assente. Chama-se José Dias e tem 52 anos.
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“Fui pastor de todo o tipo de gado: porcos, ovelhas, vacas... “, conta-me. “O meu pai foi pastor, o meu avô foi pastor. Que vida havia eu de tomar? Agora tomo conta do porco alentejano.”
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E enche a boca de pão, que empurra com vinho.
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Tem patilhas, bóina, cajado, botas grossas de pele, casaco de pêlo de ovelha. E trabalha de sol a sol. “Acordo às 5h ou 6h e só largo os animais no lusco-fusco”, diz, enquanto mete outro pedaço de pão com presunto na boca.
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Tem olhos azuis, por detrás dos óculos, e o telemóvel preso ao cinto de cabedal, porque é pastor, “de maneiras rústicas”, mas gosta “de ser moderno. Pelo menos um bocadinho.”
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Mais vinho, e desta feita presunto sem pão.
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A sua missão é garantir que os porcos engordam o suficiente até à altura da matança. Mas faz um bocadinho mais do que isso: dá “atenção e carinho aos bichos.”
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“Os porcos é como os gatos. Acostumam-se à pessoa”, conta. “E a pessoa acostuma-se a eles, claro. São animais muito curiosos e inteligentes. Se for outra pessoa a ir com eles nem lhe ligam ou até se assustam.”
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Mete mais uma fatia de presunto à boca e continua.
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“E tem que se fazer sempre a mesma volta com eles. Se se habituam à balbúrdia, ninguém dá conta deles!”, gargalha.
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“Mas tenho-lhes muito carinho. Uma pessoa cria os animais de pequenos, depois tem pena de os deixar abalar. Fica-se-lhes com amizade”, confessa.
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- E o presunto, Zé? Sabe que está a comer fatias dos seus amigos?
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“Claro que sei! Conheço o sabor de todos. Só que são tão especiais que não lhes consigo resistir! António, há mais disto?”

sábado, novembro 01, 2008

A neta do meu avô

Entrei distraída. Não tinha em momento nenhum pensado que ía passar naquele corredor. No corredor que não me passava pela memória há anos, mas que estava muito bem desenhado cá dentro. E foi uma analepse.

Estava tudo exactamente no mesmo sítio. Tudo como sempre, menos a minha avó na cozinha, a pedir-me para não andar a desapertar as pipas de vinho do Vasco, o gordo enorme e barbudo. Tudo como sempre menos o meu avô, que costumava assar peixe e carne naquele grelhador que estava apagado e atulhado de caixas.

O chão tinha as mesmas pedras de mármore mal cortadas, e quase as mesmas pessoas no corredor para a sala do fundo, a fumar cigarros. Menos o meu avô a acender os cigarros que o levaram.

E estava mais frio.

Podia ter feito tudo o que sempre quis fazer ali: procurar esconderijos, perseguir bandidos e ser princesa de um castelo da minha imaginação. Podia ter bebido vinho às escondidas, porque estava tudo no mesmo lugar mas não estava lá ninguém.

O meu avô não veio perguntar-me o que eu queria jantar. Não veio, de todo, saber de mim. A minha avó não apareceu para me dar um agasalho, apesar do frio que se pôs. Está a ver a novela, que é mais fácil fintar a dor com as ideias nubladas.

E não cheirava a grelhados. No lugar do meu avô estavam os chinelos brancos de alguma cozinheira. E não havia luz.

E estava mais frio ainda.

Perguntei aos empregados se se lembravam dele. Os que não lembravam sabiam quem tinha sido e viam-me os olhos húmidos e o peito cheio, quando dizia quem era.

Sou neta dele. Sou neta dele. Sou a neta do meu avô. E estou a transbordar de saudades, como se vê, porque o meu lábio de baixo já só treme, porque nunca mais o ouvi assobiar nem pude correr para lhe dar um abraço. Porque tenho saudades do cheiro do carro dele, que era o nosso carrinho.

Porque não posso contar-lhe as minhas conquistas e chorar-lhe os medos que trouxeram com elas; porque não posso dizer-lhe que tiro fotografias para me lembrar dos nossos passeios no campo.

Porque gostava de lhe dizer que os pinhões que tirávamos das pinhas tinham um gosto muito diferente do que os que as outras pessoas comem.

Porque não consigo lembrar-me se alguma vez o deixei com a certeza de que o amava.

Porque queria que ele soubesse que fiz como ele me disse, e apertei as mãos com força para não chorar pelos mortos, porque eles nunca se vão embora.

O meu avô marcou encontro comigo, comigo distraída. Deixou tudo no lugar e não apareceu. Não apareceu ninguém. Ninguém, menos as saudades dele, que há muito não me chegavam aos olhos.

Pelo meu avô posso chorar, porque ele não morreu. Só deixou de aparecer cá fora. Mudou-se para dentro de mim.