quinta-feira, novembro 27, 2008

Os restos da Praia

O centro da cidade da Praia é radiante, animado, revolto, desarranjado mas in, vistoso e crioulo.
Tem muito trânsito, boas estradas e pessoas bonitas, urbanas de andar dançado e quente, com um balanço de funaná nas ancas.
Tem vestidos de cores e vaidades. E mostra-se no barulho das palavras gritadas ou cantadas por todos os cantos: pelos carros, pelos bichos e pelas pessoas.

E depois do centro, a cidade da Praia tem os restos disto tudo: os feios; os desempregados; os que somaram azares e coincidências infelizes; os sujos; os que não sorriem porque já não têm dentes; os que têm as roupas rotas, sem cor; os que têm que andar descalços; e os que são tudo isto ao mesmo tempo.

Chamam-lhe bairro da Jamaica ou da ladeira do aeroporto velho.
É clandestino e nasceu há 3 anos. Fica a 15 minutos do centro da cidade. Apesar da brisa, o cheiro é isuportável. Não há água, não há luz, não há esgotos. Há uma lata que já foi de leite – num dia em que houve dinheiro para a comprar ou em que alguém veio oferecê-la – e “depois deita-se tudo nos contentores, ou no chão”, é indiferente.

A paisagem mistura o cimento das 30 casas que compõem o bairro, algumas manchas de um verde que não serve para nada, porque a terra não é fértil, e o castanho do pó que se levanta da estrada de pedregulhos e terra batida.

Passam, devagar, galinhas, vacas, bezerros e porcos cheios de carraças e tão magros como os orçamentos que estas famílias têm para sobreviver.

Guida tem cinco filhos e “um pouco de pão e água com açúcar no estômago”; a única coisa que conseguiu arranjar para comer de manhã. De resto, ou restos ou nada: Não tem cama, não tem colchão, não tem emprego, não tem fogão, não tem nenhum pedaço de terra para cultivar, não tem um negócio. Também não tem marido:“Ao menos assim não vêm mais crianças”, diz-me. Olhos negros, grandes, rasgados e brilhantes. Um corpo esguio numa camisa de mangas cavas e nuns calções largos, pretos.

Guida tem, se quiser água, uma hora de caminho pela frente: meia com o bidão vazio, na mão, outra meia com ele cheio, à cabeça. Tem sapatos, de quando em vez, se os restos forem do seu número ou de um número a mais ou a menos.

“O meu dia? Acordo, se tiver comida como. Se não, espero. Logo se vê. Umas vezes as vizinhas dão, outras vezes elas também não têm. Espera-se.”

Fala-me com calma e solta várias vezes gargalhadas. Tem um sorriso lindo, luminoso, franco. Percebe mal o meu crioulês ridículo, só tem restos de português na cabeça. Aprende a língua quem vai à escola, e sem dinheiro não se vai a lado nenhum: espera-se.

“Os meus meninos vão muitas vezes dormir com fome”, conta-me, de cabeça baixa.

Andam sempre a pé. Mas têm telemóveis: “uma vizinha deu-nos. Disse que era porque podíamos precisar de alguma coisa. Ainda não precisámos de nada de especial.”

“Não temos serviço médico porque é preciso algum dinheiro para fazer a ficha e para pagar taxas. Quando estamos doentes esperamos que passe.”

Susy é filha de Guida. Tem 12 anos e um ar doce, levemente cansado do esforço para se parecer com as meninas da sua idade. “Na minha escola não há quase ninguém que viva num sítio como este.”
Tem dois brincos diferentes, porque eram os restos do guarda-jóias que alguém lhe ofereceu. Mas não faz mal, “faz de conta que é de propósito.” Ajeita o cabelo que traz apanhado num rabo-de-cavalo e as roupas usadas, encardidas.

Está de saída para a escola, avisa que não pode demorar-se, que tem que contar com meia hora a pé.

“Hoje até acordei aborrecida. Ainda bem que vieram. Com a televisão aqui fico muito mais descansada. Sei que as coisas vão resultar. Eu hei-de sair daqui. Vou estudar para ser professora. E agora sinto mesmo que vou.“

Engoli em seco e pus a caneta no bolso.

A notícia de que a televisão está por ali corre depressa. As pessoas vão chegando, com crianças pela mão e com o melhor que têm vestido. Põem-se em fila para contarem a sua história.
São muitas caras, muitos nomes, percalços diversos mas o mesmo fim, numa esteira enxovalhada, estendida no chão de terra de uma casa ilegal, abafada e fétida. Um estômago vazio de comida e uma alma cheia de esperança.

Despedi-me com um sorriso preso, um nó na garganta e com as lágrimas suspensas pelo respeito.

Segui com tudo apertado no peito para Palmarejo Grande, a 10 minutos deste sítio, onde o primeiro-ministro de Cabo Verde, José Maria Neves, ia lançar a primeira pedra de um luxuoso e megalómano empreendimento de habitação.

“É tempo de pensar em construção de qualidade em Cabo Verde”, afirmou.
Garantiu, porém, que a habitação social “será construída numa das próximas fases do projecto de restruturação urbanística da cidade.”

Na minha cabeça, aos soluços e entre os ecos do estômago dos habitantes do Jamaica, ouvi palavras diferentes, as da vida real, saírem traduzidas da boca do chefe de Governo.
Ouvi que vai ser tudo como de costume: assim que os bonitos estiverem arrumados, arranjam-se uns restos para os feios ficarem menos descontentes e fazerem menos barulho.



3 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns... a mim claro: Por me teres sido apresentada por um amigo recente daqueles q eu gosto por me porem a pensar e q me mandam endereços de blogs sem piadas çparves nem gajas nuas. Não q eu não goste de parvoices nem de gajas... q gosto. Mas isso é coisa q não falta por i.
Mais raras são as mulheres lindas com coisas interessantes para dizer e tu dizes-las bastante bem. Vivesses tu num pais decente e verias q não te faltariam propostas de trabalho. Mas não importa ondes estás, mas importante é para onde vais, e tu na minha modestissima opinião vais em muito bom caminho.
Parabéns a mim portanto que como diz o Sergio "...que hoje fiz um(a) amigo(a) e coisa mais importante no mundo não há!"

Anónimo disse...

Estás em África, minha cara: a terra abandonada. Quando os comunas negros se artilharam das promessas soviéticas de um mundo sem necessidades e venderam tudo em troca de uma "liberdade", abriu-se a porta para o que vês. Custa, mas é a verdade. E continuo sem perceber que "liberdade" é essa que deixa entrar nessa porta o que de pior têm as gentes bonitas do ultramar...

Simão (o politicamente incorrecto)

Sofia disse...

a qualidade das tuas fotografias esta a começar a irritar-me!!!
:p

Não e que eu perceba alguma coisa do assunto (que nao percebeo)mas estao tao tao giras!Parabens

Beijoss