quarta-feira, setembro 30, 2009

A lâmpada do sorriso do coração

A hortelã transpira dentro do chá preto oferecido, que arrefece em cima do balcão de vidro, enquanto duas fatias da melhor e mais barata pizza de Berlim aquecem no forno da pizzaria de Aladino.

Atrás do balcão está ele, um egípcio sorridente, corpulento e charmoso, com nome de génio e loja de rei. Aladino tem pele morena, cabelo e olhos escuros, e uma pincelada de barba no queixo, ao comprido. Há-de estar a meio caminho entre os 30 e os 40 anos.

Casou com uma portuguesa por quem se apaixonou num instante. Têm dois filhos que lhe rasgam os olhos de brilho a cada palavra.

Aladino fala um português rápido, desenrascado e levemente tosco nos cantos. Diz “mulhera”, por exemplo, mas com tanto amor que quase não se nota.


Aladino é muçulmano. Aqui não se vende álcool nem carne de porco. Mas diz-se tantas vezes “graças a Deus” quantos os episódios que Aladino partilha sobre a sua vida com quem vem de novo, “porque teve sorte, porque é muito feliz”.

Na pequena loja que abriu na Gneisenaustrasse, perto da estação de Mehringdam, no centro de Berlim, passa o mundo, sempre a abarrotar: dos turistas aos loucos, dos sozinhos aos sem-abrigo.

“Para comer aqui não é preciso dinheiro”, garante Aladino. “Chegam, escolhem e levam, mesmo que não paguem”.

É assim com os sem-abrigo, que escolhem a pizza e, enquanto ela aquece, fogem da montra de vidro que é janela e que dá para a rua para não afugentarem a clientela.

É assim com o grupo que entra em festa e deixa abraços, só para dizer que Aladino
tem bom coração.

É assim com o judeu, que aparece todas as noites mas nunca gastou ali um cêntimo.

É assim com o empresário alemão loiro, lindo e gritante que chega montado numa imponente bicicleta holandesa para dizer olá e contar como foram as férias em Portugal.

É assim com o louco do andar de cima, que tem jeitos de ainda viver na Berlim oriental de muro erguido e se senta, imóvel, na mesa debaixo da árvore: cabelo escorrido, à tijela, bigode e óculos de armação quadrada de metal reforçada no nariz.


E são cada vez mais porque quem vem tem que voltar. Pode não vir pela fome ou porque se janta muito bem por três euros, mas porque tem saudades do sorriso e das brincadeiras de Aladino.

“O que falta à Alemanha é o amor da família. Eles têm tudo: dinheiro, médico, comida, espaços verdes, bons carros, bons transportes, uma grande história... mas não se ligam à família. São pessoas vazias e azedas. Acho que é por isso que vêm aqui”, sorri Aladino.

A hortelã está agora no fundo da caneca transparente, já sem chá. As pizzas estão quentes e é hora de jantar. Ficamos na mesa debaixo da árvore, em frente à montra da pizzaria.

Lá dentro, enquanto uns saem e outros entram, Aladino continua, irremediavelmente às voltas com a lâmpada de onde tira tantos sorrisos.

quarta-feira, setembro 16, 2009

Fuck (Parade) por ali abaixo


Fotografias [Vítor Martinho]

A KöpenickerStrasse – a caminho da famosa Fernsehturm Berlin, a torre da televisão – vem descendo gorda de gente, que desfila enquadrada por uma atenta, embora desinteressada, escolta policial.

A música chega ainda antes da multidão, como chegam as garrafas de cerveja vazias que caem de algumas mãos da amálgama dançante que aí vem, arrumada entre carrinhas de caixa aberta e olhada de cima para baixo por uma densa nuvem de fumo de tabaco e marijuana.

O som cresce e a parada ganha cada vez mais forma.

- “É a Fuck Parade”, responde um guarda a olhos curiosos que o abordam.

Hexac Hexe é uma berlinense loira alta e magra, de olhos claros. Os trapos que lhe cobrem o corpo tampam as vergonhas e sobram para pouco mais. Está num difícil jogo de equilíbrio entre o sms que envia, o charro que enrola, a cerveja que bebe e o cigarro que, em simultâneo, fuma.

Explica, olhando de soslaio por imperativos logísticos, que “a música é brutal, o tempo está maravilhoso e é tudo grátis”.

A multidão de cabeças pendulares cobre agora toda a rua e Dörg Melchow, actor de cinema, explica, por detrás de uns enormes e espelhados óculos de sol, que “a Fuck Parade surge para contestar a Love Parade, que não é mais do que uma puta vendida e comercial”.

Dörg arrisca que haverá três mil pessoas no desfile.

É uma marcha em que as pessoas aproveitam para dizer ‘fuck’ às coisas que as irritam. Este ano protestamos contra o projecto de uma media city, que quer colonizar a opinião pública; contra a video-vigilância, que não pára de atropelar a nossa vida privada; e contra a vontade de alguns interesses imobiliários, que querem entupir Berlim de prédios e tirar-nos aqueles maravilhosos espaços à beira rio”, enumera.

A marcha das marchas todas – onde cabem também os gritos dos neo-nazis – vem dividida por carrinhas, que assinalam cada luta, munidas de colunas que rugem estrondosamente metal, techo, trance, que se digladiam e confundem.

“Mas é também a cena do ‘fuck’ tudo, ‘fuck, fuck, fuck’!”, termina.

Por ali abaixo, é ‘fuck’ que dizem todos: da matrafona que dança com um cabo comprido que tem na ponta uma câmara de videovigilância de cartão, até à gorda sado-masoquista que acorrenta o namorado, sem esquecer o mulato enorme e musculado que esvoaça em tronco nu, de calças de licra verde-alface e saia de tule rosa.

‘Fuck’ tudo, ‘fuck, fuck, fuck’ – à bruta ou com meiguice – ‘fuck’ tudo por ali abaixo.

terça-feira, setembro 01, 2009

Os visitantes do luto

[A primeira fotografia é de Vítor Martinho]

O visitante decide o caminho: escolhe por onde entra e por onde sai; decide o tempo que se demora e o ritmo a que sente o frio que se esconde sob um céu quente e aberto de Agosto.

A luz fica densa entre as 2 711 estelas de arrependimento e betão dispostas em grelha no rectângulo que fazem a Cora-Berliner-Straße, a Ebertstraße, a Behrenstraße e a Hannah-Arendt- Straße, perto das portas de Bradenburgo, Berlim.

O peso da vergonha com que se ergueu, entre 2003 e 2005, o monumento de Peter Eisenman à memória dos judeus da Europa assassinados contrasta com os gritos dos dois miúdos que se desafiam para um salto mais alto e mais longo do que o anterior entre cada estela.

Contrasta com o olhar sexy que a loira alta prende na câmara com que o namorado a fotografa. Contrasta com a ligeireza com que todos se sentam a descansar, de pés pendurados e mapas abertos.

Os caminhos que se cruzam rápida e permanentemente dentro de toda a grelha de cimento são, imagino quando quase choco com outros visitantes, ilustração da surpresa com que outros se cruzaram com a morte.

Ao fundo, um segurança alto, forte e loiro pede delicadamente às crianças que não subam para as estelas. “É um monumento de luto”, explica.

O centro de informação, situado a sudeste do monumento, esconde-se na terra para mostrar as caras que o luto cobre.

“Aconteceu, por isso pode acontecer outra vez, e é essencialmente isto que temos que dizer”, Primo Levi 1).

Lá dentro, o ambiente obedece ao luto do memorial. Tenso, com luz fraca.

As palavras de Tela, escritas num postal agora ampliado no chão e iluminado, foram uma das primeiras confirmações do extermínio em massa nas câmaras de gás.

Escreveu-as de Kutno, a 27 de Janeiro de 1942. O postal foi publicado em Fevereiro desse ano, no jornal comunista clandestino Morgnfrajast.

«Já vos escrevi num cartão o destino que nos persegue. Estão a levar-nos para Chelmno e a gasear-nos».

O silêncio é cortado pelos soluços que se ouvem entre cada carta ampliada e iluminada no chão.

As estimativas apontam para que tenham sido mortos cerca de 6 milhões de Judeus.

E o espaço é curto: «Dizer os nomes de todas as vítimas do Holocausto e contar todas as suas histórias de vida levaria cerca de seis anos, seis meses e 27 dias».


1) Primo Levi nasceu em Turim, em 1919. Licenciou-se em Química, participu na Resistência contra a ocupação Nazi. Foi preso e internado no campo de concentração de Auschwitz. Escreveu, entre outras obras, “Se isto é um homem (1947)” com base na experiência que viveu. Suicidou-se em 1987.