terça-feira, dezembro 16, 2008

Arrumações praticamente implacáveis

No Plateau, downtown da Praia, os passeios das ruas eram percursos sinuosos entre magotes de vendedoras e os seus arraiais, estendidos por onde calhava, e clientes, transeuntes e curiosos.

«Um panorama desagradável para a emblemática parte histórica da capital do país», lê-se no Expresso das Ilhas de 19 de Novembro.

Havia, pelo chão e pelas bancas improvisadas, alguidares com cachos de bananas e torres de pêras, maçãs ou laranjas; tábuas encardidas com peixe e carne de várias qualidades, ao calor e às moscas; amendoins, pastilhas, bolos, bolachas – caseiras e embaladas – e cigarros – em maço ou avulso.

Havia aguadeiras com garrafões, garrafas e geleiras, na tarefa hercúlea de manter a água fresca, misturando pedaços de gelo partidos com as mãos nas garrafas já usadas, prontas para revenda.
Havia vendedoras de roupa, pedintes e homens de boa fé, encarregues de oferecer aos turistas um câmbio informal de qualquer moeda do mundo em escudos: “Câmbio! Bom negócio, bom negócio! Câmbio? Change? Quer casar? Okay, saúde e boa sorte.”

A Câmara Municipal da Praia resolveu fazer uma limpeza geral e varrer uns feios para debaixo do tapete.

«De acordo com Óscar Santos, vereador responsável pelo processo de transição das vendedeiras ambulantes, o objectivo primordial é fazer com que essas pessoas exerçam as suas actividades com mais dignidade. (...) Para isso, a CMP remodelou o mercado da Achadinha, Paiol e Vila Nova (...) e decidiu pela isenção de taxas durante seis meses e, depois, no pagamento da metade dos preços. »

A data limite para que os 2 000 feios que vendiam no Plateau parassem de estragar as vistas era 1 de Dezembro. Seriam, entretanto, «distribuídos por vários mercados, de acordo com a sua zona de residência.»

A Câmara fez um trabalho louvável: deixou tudo para o grande dia!

Maria de Lurdes tem pouco mais de 50 anos e está entre a multidão de mulheres indignadas que preenche cerca de quinhentos metros quadrados na extensão do mercado de Sucupira. Não percebo uma palavra. Vejo gestos bruscos, bocas abertas, aos gritos. Maria foi sempre vendedora ambulante. “Houve muita gente que não conseguiu um espaço. Eu não consegui e ninguém me deu nenhuma satisfação”, grita-me.

Ela é só um dos 1 200 problemas que a Câmara tem ainda por resolver. Este espaço tem lugar para 800 vendedoras, cada uma na secção destinada aos produtos que vende, e a ocupar escrupulosamente o seu pedaço de asfalto, delimitado a amarelo.

“Há mais mercados”, explica-me Maria de Lurdes, mas as pessoas estão habituadas a vender nos seus sítios. Têm os seus clientes. Não há direito!”

Para além disso, todas querem ficar nos lugares da frente, onde os clientes vão chegar primeiro. Ninguém percebe a lógica da arrumação.

A agitação é enorme. É um motim contra o pobre homem da Câmara a quem delegaram a tarefa de estar com um papelinho rabiscado a indicar os lugares às mulheres. É franzino e tem uma voz conforme. É uma presa nas mãos destas senhoras, habituadas à caça feroz da vida neste país. Vi-o duas vezes entre a multidão, sempre de fugida, a correr à frente de gritadeiras enraivecidas. Não sei se saiu vivo dali.

O Vereador justificou, posteriormente, os «pequenos desacatos» com as «atitudes menos próprias das vendedeiras. Muitas apresentaram identificações falsas e algumas exaltaram-se um pouco», afirmou.

Resumindo as coisas, a Câmara deu conta do recado e o Plateau, asseguram, “está agora limpo e ganhou uma nova vida! Já não há vendedoras, as ruas estão mais amplas e com melhor circulação.” Já não há nada disso porque agora é tudo proibido.

Vale à essência da Praia a herança portuguesa do deixa-lá-ver-o-que-isto-dá. É proibido, sim, senhor, mas no dia 2 cada um voltou ao seu lugar nos passeios do centro da cidade e, até ver, o Plateau continua exactamente na mesma.

1 comentário:

david disse...

Hoje fui até Cabo Verde e voltei sem sair de casa.
Dizer que está bem escrito é pouco.

Ler-te é do baril!