sexta-feira, junho 26, 2009

A história que me escolheu

Fala-me primeiro na sombra e num tom conforme, circunspecto, para que quem não seja para aqui chamado não perceba uma palavra do que se vai seguir.

A festa de crentes que à volta serpenteia não dá por nada e é certo que isso se deve apenas à sagacidade com que este sujeito opera.

Examina-me rigorosamente a credencial ao pescoço, olha-me de esguelha e atira, em surdina: “Você é jornalista? Tenho uma história para si! Tenho uma história para lhe contar”.

Joaquim tem “uma data de anos, que mais do que isso não interessa que o que há para contar é sobre o Cristo Rei”, que faz 50 anos mas não tinha quase nenhum quando ele lá chegou.

Tem sotaque alentejano e um falar apressado, de homem de segredos, cujo olhar se desvia do da conversa para se acautelar quanto aos transeuntes. A sua fala interrompe-se assim que alguém se aproxima.

“Cheguei lá em 1944. Precisavam de pedreiros e eu estava desempregado e fui lá e fiquei logo a trabalhar”, começa, quase a trautear, sem pausas para respiração.
“As colunas estavam a meio e depois fomos enchendo por aí acima, até chegar ao topo. Acabámos de encher a cabeça do Cristo Rei em 1958, eram onze e meia da noite, no mês de Maio, chovia como Deus a mandava. Quando acabámos estávamos todos encharcados. Fizemos uma festa e fomos embora”.

Um dia, “depois de estarem montados uns guinchos e uns andaimes” para que os homens pudessem “descascar as colunas até ao chão, tudo a ponteiro, durante um ano”, Joaquim escorregou.

Aconteceu-lhe ser o único acidente que aconteceu durante a construção do Cristo Rei: “Fiquei dez minutos pendurado, a roçar nas colunas por causa do vento, escavaquei-me todo”, recorda.
“Mas antes ganhei um prémio: eu era o tipo que descascava mais rápido a casca de cimento!”

Trabalhou até ao último acabamento. Sabe muito mais segredos do que os que revela, garante.

Sabe “coisas de cofres, de listas e de dinheiros correntes, de caixas de cimento forradas a esferovite, mas isso não é coisa para se dizer agora”.

Em Maio de 1959, na inauguração do monumento, ajudou a arrumar as pessoas, “que aquilo era excursões por toda a parte”.

Depois disso ficava lá aos sábados e aos domingos a fazer as faltas dos outros, “que aquilo era muita gente de visita: chegou a fazer bichas de 150 metros. O bilhete era 25 tostões”.
“No elevador estava marcado 17 pessoas. Eu chegava a levar às 20 e às 25, para despachar o pessoal”.
Perguntei-lhe se achava que este Cristo Rei, senhor de meio século, ainda era o seu filho. Pronto, garantiu-me que “até sabia quantos quilos de cimento levou, quantos quilos de pedra, quanto levou de areia”.

Contou-me que “a figura tem de dedo a dedo o que tem de altura, 28 metros”, que “dentro dos braços tem uma média de cinco metros de altura” e que “a unha do dedo polegar tem 70 centímetros e o dedo maior tem dois metros e 20”.

Para provar o que dizia, Joaquim tinha, embrulhadas num saco da farmácia, fotografias de cada momento. Mostrou-as uma a uma e demorou-se naquela em que era um moço novo e jeitoso, a pousar para o retrato em frente à obra feita.

Tão depressa como começou, e com a mesma cautela de qualquer informador secreto, Joaquim calou-se. Levantou-se do banco para onde me tinha levado para o segredo. Olhou em volta e para mim mais uma vez: “E é isto, pronto. Adeus”.

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