sexta-feira, fevereiro 06, 2009

O homem que há-de mudar o mundo

Passava da meia noite. O vento arrefecia-nos a cara queimada pelo verão que é o inverno na praia Qurum, em Mascate, capital de Omã. Tudo transpira história e percebe-se muitas vezes Portugal, que andou por aqui entre 1507 e 1650, e que, mesmo depois de ter sido mandado embora pelos Otomanos, se deixou ficar.
Ficou nos fortes plantados nas montanhas, pontuadas de verde, recortadas e encaixadas no céu; nos canhões com o brasão da coroa, à porta de inúmeros edifícios; na marginal que contorna a parte velha da cidade e o seu mercado vivo de gentes e de cores; nos museus fechados porque é hora de almoço; e ficou, sobretudo, no olhar de todos os que aqui vivem, sempre de braços abertos.
A bandeira de Omã é branca, pela paz, verde pela natureza de todas as esquinas, e vermelha pelo sangue que se derramou no caminho longo até à independência.
Voltamos à noite. Está fresca, já se disse. Na rua – onde o trânsito não faz prever a hora que, com a espera, avançou – há um multibanco teimoso e dois viajantes com o quarto por pagar.
- “Precisam de ajuda?”
A voz sai, num inglês torcido, de uma boca Omã, onde também está um cigarro. O homem tem vestida uma túnica – que em rigor se chama dishdasha – castanha. Na cabeça um lenço claro, enrolado, e nos pés – que são como os de todos os homens daqui, enormes, gordos e redondos – umas chinelas encardidas, de couro.
Ali Ahmed Al Kafiri arruma o dinheiro que levantou na carteira e sorri, agora com o cigarro na mão.
- “Vou deixar a minha família em casa. Em dez minutos volto e levo-vos a outro multibanco. Havemos de encontrar um que aceite os vossos cartões.”

Dez minutos de vento na cara, e Ali a parar o carro. A boleia não atrapalha, precisava de chá e de açúcar para a viagem do dia seguinte, para casa: mais de mil quilómetros até Salalah, a sul, virada para o Índico.
- “Não me interessa a vossa cara, a vossa cor, o vosso sangue. Ajudo-vos porque sei que quando for eu a precisar alguém vai ajudar-me com a mesma vontade. Somos todos humanos.” Conduz com calma e empurra as palavras com gestos firmes das mãos escuras.
Trabalha no Ministério da Herança e da Cultura e, como nós, percebe mal o que se lê nos olhos da maioria dos árabes dos Emirados.

- “Não abrem a boca. Até hoje não consegui perceber o que têm dentro deles. Não querem saber das pessoas. É perfume e nariz para cima”, brinca. “Mas sinto afecto por eles. Vocês não? O Islão ensina-nos a gostar de toda a gente; a amar todas as pessoas e todas as coisas da natureza. Eu gosto dos portugueses. A guerra é história; não há nada para odiar”, acrescenta.

Sente que é possível que os nossos antepassados tenham sido árabes. E sente que todos os que passam pelo mundo o fazem na condição de iguais, “porque todos nasceram a amar a sua mãe”.

- “O meu pai e o meu avô viveram em grutas, entre o deserto e o mar. Foi aí que nasci. Cresci com a minha família, com vizinhos e com viajantes. Houve sempre muita gente a viver connosco. Chegavam e ficavam sempre por algum tempo. Se viessem em paz ficavam e eram sempre bem-vindos. Dormiam a um palmo de nós.”

Estaciona o carro em frente a um hipermercado. Encaminha-nos para um corredor onde há quatro caixas multibanco. Segue para o chá e para o açúcar. E volta.

- “Deixo-vos onde vos encontrei?”

- “Não vamos atrapalhar?”

- “Claro que não atrapalham. Ficam-me a caminho de casa.”

Voltamos ao carro. No regresso passamos pela bondade nos olhos dos homens, pelas religiões, pelo seu Islão e pela vida. Ali pára de novo o carro perto do multibanco teimoso, mas a viagem continua por muitos mais minutos, nas palavras.

Trouxe-nos porque lhe ficávamos em caminho. Se não ficássemos, tenho a certeza de que nos traria na mesma.

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