segunda-feira, fevereiro 16, 2009

A feira da caça

Do fresco da noite que está hoje já se falou, por ser ele igual ao de uma noite passada, também em Omã. Fale-se, então, dos passos que faltam para entrarmos, garante Khalid, jovem e paciente cicerone, “no único sítio onde vale realmente a pena ir entre as horas que aconchegam a de jantar”.
[Fotografias: Vítor Martinho]
O Festival de Mascate acontece todos os anos entre Janeiro e Fevereiro e figura na lista dos mais famosos da capital. Chegam, arranjadas e perfumadas, pessoas de todo o país, prontas para «experimentar a verdadeira essência de Omã: as suas tradições, a sua cultura e modernidade, alcançada sem esmagar o traço do desenho da sociedade tradicional.»

O clima é de Feira Popular – pela diversão e pelo aperto da afluência, ávida de folia. Elas a concorrerem com os carroceis, transbordantes de brilho e maquilhagem; eles muito viris, com pose, barbas aparadas e desenhadas. Todos vestem roupas impecáveis e trazem os olhos muito abertos, atentos: hoje é dia de caça.

Vimos aqui porque é onde podemos ver miúdas”, explica Khalid, 22 anos, cabelos farto e escuro, encaracolado, e sardas no nariz. É estudante de Engenharia Informática na Universidade Sultão Qaboos, a maior do país.

Só comecei a falar com raparigas quando entrei para a Universidade”, continua. “Aliás, é a melhor coisa de tirar um curso superior: poder vê-las, estar com elas, ouvi-las, dizer-lhes coisas.”

São muito poucos os visitantes que não trazem os telemóveis na mão.
As mulheres nunca vão ter com um homem”, diz. “Nós é que vamos ter com elas. Levamos na mão um papel pequenino, dobrado, com o nosso número de telefone. Não falamos, só sorrimos. Se ela estiver interessada liga. Se não estiver, já se sabe...”

Não será preciso ser um génio do engate para se perceber que saem muitos papéis da mesma mão todas as noites: “Depende da qualidade do que andar por aí, claro, mas dou sempre o número a mais do que uma”, confessa.

A tecnologia ajuda no galanteio: os telemóveis deles e delas têm o bluetooth ligado e ele faz, várias vezes, a vez do papel.
Khalid deixou em casa o seu traje tradicional: a disdasha (túnica) e o kimah (chapéu redondo, com bordados). Veste-se como se diverte: à imagem de um universitário europeu, mas sem álcool.

Tenho amigos que bebem, mas isso é escolha de cada um. Eu não bebo. Fumo muito quando saio com os meus amigos: shisha, tabaco... Nem uso drogas. Tenho um amigo que foi apanhado a fumar droga e que vai cumprir 23 anos de prisão. Tem a minha idade.”

Khalid deve ter pouco mais de 1,70m. Tem formas redondas e um balanço extrovertido no corpo. Fala alto, entre gargalhadas, e percebe-se, pela frequência com que o seu telemóvel range e apita, que é sociável e muito popular.

É mais comedido quando fala em inglês. “A culpa é dos professores, que são todos indianos. Dizem wán em vez de one! Como é que conseguimos aprender a falar como deve ser?” Odeia indianos, assegura. E lamenta-se: “Tinha tanta coisa para vos dizer, mas com este inglês...!” E ri-se. E rimo-nos e agradecemos e lamentamos não entender árabe para conhecê-lo todo.

Vamos andando pela Feira e podíamos estar em Lisboa. Não há uma única nota de música árabe a sair das colunas enormes e potentes. As pessoas abanam-se – levemente, que é proibido dançar em público – ao som de música brasileira e latino-americana.

Percebe-se que a miúda que passou era gira pela cara de Khalid, que se contrai num sinal afirmativo, e pelos barulhos que faz com a boca, entre estalidos e suspiros.

“Se ela responder vamos falando por sms e ao telefone durante um mês ou dois. Se a coisa for séria encontramo-nos depois disso para começar a namorar.”

Na rua não há beijos. Beija-se em casa ou no carro que, para efeitos pudicos e legais, é mais casa do que rua.

O sexo antes do casamento é como o álcool, cada um sabe de si. A maioria não o faz. E casamos quando temos dinheiro. Precisamos de ter bastante dinheiro.”

Voltamos ao carro depois do espectáculo de pirotecnia e eu não contenho a curiosidade sobre o F. de prata, pendurado num fio que baloiça no retrovisor, ao ritmo da condução desastrosa de Khalid.

Era da Fátima. Foi minha namorada até ter chegado um melhor partido, com mais dinheiro. E partiu-me o coração”, e aperta o F. com a mão direita, sentido. “Mas não quero falar sobre isso”, remata.

A música, a que ele sobe o volume para fazer parágrafo na conversa, em árabe, canta um amor perdido, que foi embora, ninguém sabe para onde.

Khalid lê mais uma mensagem no telemóvel e vira o retrovisor para nos ver melhor. Sorri. Tem um ar gingão e confiante. Volta a olhar para a estrada, satisfeito. Talvez fosse a miúda de há pouco. E se não resultar com esta, amanhã há feira outra vez.

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