sábado, janeiro 24, 2009

O Corão no táxi

Fui a última a entrar no táxi. Ia zonza, enjoada. A shisha tinha-me descido às pernas e voltado à cabeça, para a deixar à roda.

A flutuar nas ideias tinha ainda o luxo disfarçado de tradição do Madinat Jumeirah, um resort que se vende como o mais fascinante do mundo e, pelos brilhos que vi, não deve andar longe da verdade. Ao fundo, noutra ideia nublada, a imponência do Burj Al Arab. 321 metros de altura com o desenho de um barco e o mundo lá dentro.

A porta do táxi bateu como quem diz que o dia estava a terminar. A noite estava quase tão fria como a de Lisboa. Ao volante estava um corpulento, de cabelo farto e grisalho. Tinha uma educação a fugir à regra da falta dela, que se pratica por aqui.

- “Podia ser português. Parece mesmo português. “

- “Sou do Paquistão, senhora.”

Quis saber de política. Ele explicou que é tudo religião.

- “Sou da Liga Muçulmana, embora reconheça o que o Partido Popular do Paquistão fez pelo país. ”
- “Mas não gostava da Benazir Bhutto?”

- “Era uma grande mulher. Filha de um grande homem, também. Chorei muito quando os mataram. Ela era boa mas não podia ser líder. É mulher. Respeito-a como irmã mas não a aceito como líder. Não pode comandar uma nação; o seu lugar é em casa, entre paredes.”

Falava sem tirar os olhos da estrada desarrumada. Percebia-lhe, de perfil, uma cara de traços grossos, como a voz, convicta.

- “Na sua autobiografia, a Benazir cita o profeta Maomé para dizer que "o Paraíso fica debaixo dos pés das nossas mães”, arrisquei.

- “Sim, mas o Corão também diz que "o Paraíso de uma mulher é debaixo dos pés do seu marido”, rematou, intransigente.

E mergulhou – e mergulhou-nos – em episódios do livro sagrado para nos mostrar que só aquele que ama o seu Deus mais do que a si se pode salvar; e que é preciso que cada um cumpra o papel que Deus lhe atribuiu; e que, por isso, cada um no seu canto. E mais, e mais.

Ele abranda à chegada para poder terminar o sermão. Pagamos-lhe mais pelo bom bocado de conversa: não entramos nas mesquitas mas elas vão entrando em nós.

1 comentário:

Anónimo disse...

Foi, de facto, uma bela aula islamica...

O senhor estava tão efusivo em certos momentos a explicar a sua doutrina que pensei que em vez de nos levar a casa ia levar-nos directamente para a mesquita mais próxima (sem passarmos na casa partida nem receber os 2 mil escudos)... lol

Mas vá lá, tudo acabou em bem e até acabou por ser das viagens mais agradaveis de taxi... :)

Mais um post em grande joana! Gosto...

Beijokas do Al Ramalah