sábado, janeiro 17, 2009

A herança posta ao canto

O Dubai não quis assomar-se aos olhos dos que vêm de fora para se afogarem em luxo para lhes mostrar um pedaço de terra fútil. Agarrou nas velharias – a história e a cultura, coisas decrépitas-decrépitas – e juntou tudo numa aldeia fingida, mas com pessoas reais.

A ideia é só dar uma ideia, que as estravagâncias ficaram todas presas nas pontas do céu. A Heritage Village fica a 5 Km do centro do Dubai. É menina que se vê numa hora, mas que se vende toda, até à última bugiganga.

A divisão de tarefas é evidente e costumeira: os emigrantes encarregam-se do trabalho, os imigrantes do lazer.

Imagine-se tudo em tons de castanho, a recriar cinco séculos atrás.

À entrada há casas de pedra – de verão e de inverno –, desenhadas com respeito pelas tendências arquitectónicas dos tempos que se quiseram aqui encaixar.

No palco, posto no centro da aldeia, a puxar a modernice e rodeado de cadeiras, há crianças com vestidos que ofuscam e os guinchos do costume, menos a educação em falta nos modos arábicos.

Nas tendas de paredes e telhados entre a cana e a palha e antes das lojas onde se vende tudo o que ilustre o já repisado costume – dos perfumes aos sapatos de pontas reviradas, sem esquecer os lenços ou as facas de meia-lua – há espécimes de qualidades diversas – digo género, idade e tamanho – para amostra e para interacção.

Comunicamos num misto de inglês mastigado e gestos tolos. Entramos, passamos os olhos, e é feio dizer que não ao café-chá-ou-assim que o ancião serve aos turistas em seis copos pequenos que rodam por todos, depois de mergulhados num alguidar com água. É feio também dizer que não às tâmaras que, por estarem quase mastigadas e guardadas num baú de metal, não passam pelo estreito de ninguém, porque ninguém tem, sequer, coragem de lhes chegar a mão: põe-se o obséquio no bolso e segue-se viagem, a sorrir e a acenar.



A visita termina com o sol a descer e com os gritos dos garotos a descerem com ele. À volta de tudo põe-se um vento frio, que nos empurra para um abrigo onde estão três homens – um miúdo, um muito velho e outro no meio – , à volta de uma fogueira. Insistem nas fotografias:
- “Agora ela”, ordena o velho, em árabe, ao do meio, que traduz.

- “Agora tu”, continua. “Ela é tua mulher?”

- “Sim. Minha namorada. Minha mulher.”

Ouvimos murmurar e sentimos gestos de discussão. O velho intransigente, o miúdo a dissimular a conversa e o do meio aflito.

- “Mas têm filhos?”

- “Filhos não. Mas é minha mulher. Namorada-mulher.”
E eu, de olhos muito abertos, à espera de perceber.

Mais murmúrios e gestos e gestos e vergonhas. Vim-me embora puxada por um braço, com a curiosidade a puxar-me pelo outro. Não se recusa um negócio sem, pelo menos, ouvir a proposta.

2 comentários:

Anónimo disse...

Ja se sabia que os Emiratos não são Cabo Verde e Cabo Verde não são os Emiratos.
Para além da arqitectura, a cultura, história e tudo o resto, é diferente.
Ou talvêz não...
Ainda não tinhas inalado decentemente o pó do deserto, das construções novinhas em folha e das demolições e ja te encontravas com os teus. Os deserdados da vida, explorados e espezinhados, e lhes entregavas o papel principal dos teus guiões.
Actores, estrelas principais deste palco que é o Mundo.
Deste filme que é o teu.
Há opções que fazes que se tornam como uma marca de água, indelével, ás vezes quase invisivel, mas inapagável.
Quem disse que o Dubai é assim tão diferente de Cabo verde?
Parabéns.
Bem vinda ao Dubai. :)

Anónimo disse...

Nunca tive curiosidade de ir ao Dubai. Melhor: sou curiosa por todos os sítios, mas o Dubai não me puxa com aquela curiosidade apaixonada.
Agora despertaste uma pontinha mais. Quem sabe um dia, daqui a muitos dias e depois de mais crónicas tuas, tenho vontade de dar um grito até lá?

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