segunda-feira, janeiro 26, 2009

Em casa no mundo

No chão de terra batida, um garoto de ano e meio faz uma birra demorada, numa luta hercúlea por uma girafa insuflável.
O pai, figura alta e redonda, a quem a energia foi fugindo com a idade, observa-o, impávido.
Ele esperneia, levanta pó e grita. Faizal olha-me e sorri, como quem se desculpa pela barulheira.

- “Deixo-o sempre cansar-se”, diz-me. “Queres um café?”
E fomos.
- “És turista? Eu vivo aqui desde sempre. Era produtor de programas de televisão mas reformei-me. Tenho nove filhos daquela mulher que está ali ao fundo.”

- “E tem outras mulheres?”

- “Não falo sobre essas coisas!”, diz-me com uma gargalhada tapada pela mão a esconder a cara, envergonhada.
A mulher sentada lá ao fundo tem 50 anos, a pele morena e os olhos rasgados. Os seus pais chamaram-lhe Emerine.
Quando veio das Filipinas para o Dubai, converteu-se ao islão para se casar com Faizal e agora chama-se Miriam. Apesar do corpo tapado, é expansiva e tem a boca de ouro sempre aberta, ou a rir ou a falar.
Mexe as mãos com muita pressa.
Conversa comigo enquanto toma conta da família.

- “Rashid, agarra o miúdo!”
O pequeno Hajer não sossega por um instante. E cada brincadeira é mais arrojada do que a anterior. Preparava-se agora para saltar de uma altura que triplicava a sua.

- “Cada cinco minutos sem nada partido são uma conquista”, diz a mãe.

Metade da família veio ver Rashid, de sete anos, actuar. Vai participar numa coreografia de grupo, em que rapazes, vestidos com roupas tradicionais, dançam com kalashnikovs de plástico. Nos dias normais, Rashid passa o tempo a treinar para ser futebolista.

Hajer, o miúdo com pilhas, começou agora a comer terra.

- “Noorah, corre!”, grita Mariana, coordenadora de operações.
Noorah tem 11 anos e tanta timidez que, depois de entregar o miúdo peganhento à mãe, não me conta absolutamente mais nada para além da sua idade. Esconde-se atrás de Fatima, a mais velha deste casamento de Faizal. Tem 24 anos, olhos enormes, e estuda enfermagem.

- “Estou no último ano da faculdade e a arquitectar a minha independência”, pisca-me o olho.

Mariana tem Hajer ao colo e abana-o para o distrair.

- “Odeia estar quieto, mas deixa-nos exaustos. Às vezes tem que ser.”

Volto à Fatima.

- “O que te falta para seres independente? É o teu pai que te prende, a tua religião, os teus amigos, o teu namorado...?”

- “Preciso de terminar o curso e de ir estudar para outro sítio. Nunca viajei. Sou hiper-protegida. Prende-me a preocupação dos meus pais. Mais a da minha mãe, até. Sabes como são as mães... Os meus amigos usam a Internet, estamos sempre perto. E em relação ao Islão, é só um compromisso, não é uma prisão: as suas regras protegem-me, não me limitam. Tenho um véu mas tenho o mundo pela frente.”

Mariana dá ordem a Faizal para que distribua a comida pelas tropas. Enquanto desembrulham os hamburgueres, o miúdo decide assoar-se ao lenço da mãe. Ela larga-o no chão.

- “Noorah, toma conta dele”, delega.

Pede-me os meus contactos em Portugal, porque “nunca se sabe que voltas a vida dá”. Explica-me depois que a hora de orações está a aproximar-se e que têm que ir andando.

- “Foi um prazer ter-te connosco aqui.”

Faizal aproxima-se.

- “Se quiseres ir a nossa casa, terás uma festa à tua espera”, promete.

Despeço-me e agradeço.
Foi bom sentir-me em casa. É bom saber que o mundo me serve para morar, porque está cheio de famílias (quase) como a minha.

3 comentários:

Anónimo disse...

Olá, Joana

Vim aqui parar por acaso e a uma hora em que devia estar a ultimar trabalhos que me comprometi a entregar amanhã cedo. Não dou o tempo por perdido.
Foi uma visita inspiradora.
Por isso (e pelo resto), obrigada.

Rita Pimenta

Anónimo disse...

um fã teu mandou-me o link. Simplesmente agradecer-te pelas palavras, pelas hitorias, afinal este mundo esta feito de palavras, discursos, momentos e crónicas simples e normais. Historias do dia-a-dia, quotidianas que para a maior parte do mundo passam inadvertidas, passam ao lado. Nesta "babel" louca e posmoderna as historias simples continuam a ser as mais importantes, afinal sem elas que seria dos predios e camelos espalhados por este arquetipo "posmoderno". Parabens de um louco luso-argentino

borges disse...

Parabéns Joana. Só hoje soube q fazias anos. (não precisas de colocar este comentário se não quiseres q se saiba) lol