quarta-feira, dezembro 03, 2008

Amor velho, como a cidade


Fica a 80$ e a meia hora do centro da Praia, na escala de tempo de um Iace acolhedor, sempre tão cheio que dá gosto.

A paisagem foge a uns 80 à hora, aos ziguezagues e solavancos. A estrada rasga montanhas de terra, com um recorte perfeito na linha do horizonte.

As colinas estão pontuadas com verdes assimétricos e animais de quinta avulsos.

Percebe-se que o destino está próximo pela arrumação.
A cidade velha vive numa quietude intocável. É uma cidade de antes do cimento, das estradas só de pó e das casas por acabar.

Foi a primeira capital das ilhas de Cabo Verde e o berço da cultura do arquipélago. Começou a crescer a partir de 1942. Está na história como a primeira cidade-porto construída para o tráfico transatlântico de escravos, e foi o caldeirão dos amores entre escravas e senhores portugueses e espanhóis.

A Cidade Velha foi palco da recriação do mundo Altlântico. Agora, é só umas coisas que se passaram há uns séculos.

A vista começa na curva onde se vê o mar pela primeira vez e termina na pequena praça do centro, que desemboca em dois restaurantes com esplanadas coladas ao mar.

À esquerda há cadeiras de plástico e a sombra nas mesas enferrujadas é dada por umas palmeiras pequenas, ratadas e feias. À direita as cadeiras são de verga, as mesas enormes, cobertas com toalhas de linho, impecáveis, tudo à sombra ampla de árvores altíssimas. Acho que nem as moscas são as mesmas. Os galos é que vão e vêm, sem distinguir o canto que fica mais perto dos ricos e o que fica mais perto dos pobres.

Chicharro frito com arroz e saladinha. 200$00. E um café. Antes disso a sorte de haver luz, a sorte de haver água, e a sorte de não ter chegado ali dois dias antes, quando a bomba da máquina se tinha estragado. Café, enfim.

As casas ao lado do restaurante têm uma porta para a beira-mar, outra para a rua principal, que dá para a praça.

Esta casa estava de portas abertas. E tinha um movimento de maré – gente a entrar e a sair; muita gente. Uns vizinhos, outros amigos, outros as duas coisas e muitos deles só curiosos, de passagem.


As janelas e as portas estavam presas com pedras para se manterem abertas. A corrente de ar disfarçava a falta de ventilação. Quando a brisa abrandava, o cheiro era intolerável.
Em primeiro plano estava, sentada numa cadeira de rodas, uma senhora muito mais velha do que as suas rugas deixavam perceber. Amputaram-lhe uma perna há um ano, conta-me depois, muitas vezes seguidas. E depois outra vez. Tem vestido um bibe verde e por cima uma camisola cor-de-rosa. Pelas costas traz um casaco azul-vivo, com círculos brancos. Está descalça.

Ao fundo, num sofá a cair de velho, uma menina de 12 anos ralha com uma de dois, para que coma o iogurte.

“O meu nome é Catarina Pereira de Sousa”, murmura, da cadeira de rodas, num crioulo muito mastigado, que me custa a entender.

“Catarina Pereira de Sousa, o meu nome. Catarina.” Chama-se Catarina Pereira de Sousa muitas vezes todos os dias.


- “Come o iogurte, não tenho tempo, Luna! Come o iogurte, vá!” A moça, num ralhar nervoso e a outra, mais miúda, de beicinho e a ameaçar chorar.
Catarina tem na mão um pano de cozinha, que enrola e desenrola compulsivamente.

- “Não sei quantos filhos tenho. Sete, oito ou nove. Nem sei quem são estas pessoas aqui de casa.”

Não sabe dos netos, nem dos vizinhos, nem dos curiosos. Não sabe de mim mas vai falando. Chama-se de novo Catarina Pereira de Sousa. E grita com toda a gente, nos intervalos da nossa conversa de surdos.

- “Esta casa me pertence. O meu nome é Feliciano Sanches Cimeiro.”

A figura negra, de cabelo crespo e grisalho, vem da porta que dá para a linha do mar. Veste uma camisa azul, mais clara do que o casaco de Catarina, e umas calças que lhe dão pelo tornozelo. Também está descalço.

- “Sou Feliciano Sanches Cimeiro. Esta casa me pertence.”

Tem uma boca grande, sem nenhum dente, e lábios muito grossos.

- “Não te dou mais comida nenhuma hoje se não comes isto! Vá!” E a miúda a virar a cara e a querer sugir do colo da outra.

- “O meu nome é Catarina Pereira de Sousa.”

- “Sou Feliciano Sanches Cimeiro, filho de Cosmi Cimeiro.”

A pequena a chorar, a maior a gritar e Catarina a gritar por cima várias palavras que não entendi, sempre com o olhar perdido no vazio. Enrolava e desenrolava o lenço sempre ao mesmo ritmo.

Parou de gritar e voltou a mim, e voltou a chamar-se Catarina Pereira de Sousa. Respondeu-me sempre isso. Por trás, o seu marido respondeu-me sempre Feliciano Sanches Cimeiro, a tudo, muitas vezes.

- “O senhor Feliciano foi professor toda a vida, adorava dar aulas. Sabia muitas línguas, era doutor. Um doutor. Quando se reformou enlouqueceu. Agora pesca para poder sobreviver.”

- “E a mulher dele, o que tem a Catarina?”

- “A D. Catarina ama o senhor Feliciano. Ele enlouqueceu e ela enlouqueceu com ele”.

3 comentários:

Zaclis Veiga disse...

Olá Joana, gostei muito de seu relato sobre Cabo Verde, lugar que eu gostaria muito de conhecer. Abraço,
Zaclis Veiga

Anónimo disse...

Joana, quase se consegue sentir o cheiro, a paisagem, o som, com tão boa descrição.
Beijoca e aproveita mt! Ana Rolo

Anónimo disse...

Mas que histórias aqui tens! Que dizer... são histórias da vida, retratos vivos e cheios.

O blog está extraordinário :)

Ana Santos