quinta-feira, dezembro 10, 2009

Rabelados, com a graça de Deus (capítulo I)

“Vamos a todo o lado sem nome. O nosso nome é Rabelados, com a graça de Deus”, começa, num crioulo cerrado, uma figura mulata, baixa e magra, com olhos claros e uma cruz de madeira ao pescoço: “Vamos a todo o lado sem nome”, insiste. “Ou pelo menos íamos. Esta é a história do nosso caminho.”

Vivia-se a década de 40 do século passado. A metrópole salazarista queria garantir mão firme nas colónias e a igreja ajudou, evangelizando. Na ilha de Santiago, em Cabo Verde, os Rabelados – como haviam de chamar-se – bateram o pé e enfrentaram a fúria de Lisboa, pela liberdade do seu Deus. Ficaram na história como símbolo de resistência ao poder da ditadura. Hoje, a luta é outra: batem-se pela sobrevivência, pela tradição e pelo diálogo com a sociedade de que fugiram, e que ainda os olha de viés. Os Rabelados procuram um propósito, porque a liberdade apagou o seu.

Sábado, dia de congregação

A aldeia fica em Espinho Branco, Calheta, ilha de Santiago, Cabo Verde, num cotovelo recortado, quase dentro do Atlântico. À volta há azul-mar e azul-céu, encaixados nas montanhas de rocha, terra e verde. Os vales e as colinas têm extensas plantações de milho, grão, feijão e batata e são pontuados por casas de colmo e animais de quinta. Entre as casas, num espaço plano, há miúdos que jogam futebol, ao fundo outros correm atrás de arcos de metal e de pneus velhos. O resto dos caminhos têm mulheres com a vida à cabeça.

Estima-se que haja cerca de 2 mil Rabelados na ilha de Santiago. Nesta aldeia, a maior de todas, há 400.

É sábado, dia de congregação. Reúne-se sempre na mesma casa de colmo quem quer ouvir a palavra de Deus, que sai da boca do líder. À porta está uma menina pequenina, a brincar: faz de conta que faz o almoço, tem pedras num tacho velho, e mexe-as, sempre a conversar consigo. Na sala depois da porta há bancos de madeira corridos, a fugir ao sol que entra pelas gretas que fazem a vez de janelas nas paredes.

Sabedoria divina

Moisés Lopes Pereira, 26 anos, é líder da comunidade há dois, desde que o seu pai morreu. É ele quem lê – com a dificuldade de quem nunca foi à escola e “aprendeu com Deus a juntar as letras” – o antigo Testamento.
“Sou a cabeça desta comunidade”, afirma. “O papel do líder é representar e conduzir o seu povo e ler a escritura. É isso que faço. Faço justiça: analiso os casos de conflito, dou a minha sentença mas nunca atribuo castigos. Os Rabelados são contra qualquer tipo de violência. Aconselho as pessoas, ajudo-as, esclareço-as. Sou uma defesa e uma protecção para o meu povo”.

Para Tchétcho – como prefere que lhe chamem – a idade não tem nenhuma relação com a sabedoria e o facto de ter idade para ser neto de alguns dos anciãos da comunidade não diminui a sua segurança nem a sua convicção:Sou jovem, sem dúvida, mas jovem é igual a velho, velho é igual a jovem. O que é grande é a sabedoria. É claro que sou o mais indicado para ser o chefe. É assim desde pequeno, porque foi Deus que decidiu. O meu pai estudou 19 escrituras sagradas, estudou muito mais do que eu, mas não faz mal. A sabedoria é grande”.

As pessoas entram e saem. Nunca há mais de sete a assistir. São todas velhas à excepção da menina que cozinha pedras. A leitura segue com uma eloquência tremida, indiferente aos movimentos na sala e ao burburinho que sugere que se passa ali também para cumprimentar uns vizinhos e saber de outros. Entra um cão que procura festas e, debaixo da ombreira da porta, permanece um homem muito velho, sentado, que completa, muito antes do líder, todas as frases da leitura.

No centro da casa há uma grande cruz de madeira, em frente à qual se ajoelha quem chega.

Durante várias gerações a religião foi a escola dos Rabelados. Só o líder sabia ler e escrever. Ensinava-se aos pequenos “a oração, as doutrinas, a fé, a virtude, a justiça, as boas acções e o bom caminho”.

Para além da Bíblia, tinham como base o Lunário Perpétuo e um Tratado de Medicina. Hoje, afirma Moisés, “as coisas estão diferentes. Já todos os Rabeladinhos vão à escola. As pessoas têm mais ambições, saem daqui para trabalhar fora e não apenas na agricultura. Umas voltam, constituem família, outras ficam por lá”.

2 comentários:

Amílcar Tavares disse...

Obrigado por este artigo sobre os Rebelados. Adorei o artigo! Acompanharei a sequela.

Kristýna disse...

Que ganda fotos!!!