Cheira a espera. O espaço é cinzento-mármore e tem linhas de inox nos corrimãos das escadas até ao varandim.
Antes dos cartazes descolorados, colados nas paredes com fita-cola que já amareleceu, há filas de gente entorpecida, de pé, a sobrar do espaço de espera.
Depois das secretárias imponentes há todo um outro mundo.
O espaço do lado de lá é dos funcionários da forma, que partilham, deslocando-se em marcha fúnebre, postura, des-sorriso, feições e aquele desenho de rabo que é a forma de uma cadeira.
(Sai um do lado dos da forma com um cigarro atrás da orelha e um isqueiro na mão. Passo de cágado.)
- “Precisava de esclarecer uma dúvida”, arrisco, já a abanar os braços como quem, dentro de água, grita por socorro.
(Entra no lado dos da forma o do cigarro, que agora é o do isqueiro porque já acabou de fumar. Passo de cágado.)
- “Previsões de tempo de espera?!” E um ar de indignação superlativa, de quem não tem que responder a perguntas: “Não temos. É que aqui atendemos senhas D, E, F, G. Tire a sua senhazinha e espere, menina. Tem que esperar”.
(Sai o mesmo do lado dos da forma com outro cigarro atrás da orelha e o mesmo isqueiro na mão. Ainda passo de cágado.)
Os dormentes das filas, do lado de cá, vão desesperando. Bufam, de senha amarrotada na mão. Põem os olhos no ex-libris da sala cinzenta: ecrã enorme, topo de gama, a fazer dlim-dlão quando muda a vez para mostrar o estado da arte, todo-brilho-e-eficiências .gov.
(Entra de novo no lado dos da forma o do outro cigarro, que agora é outra vez o do isqueiro porque acabou outra vez de fumar. Ainda passo de cágado.)
Senha e meia e um grito.
- “Só para a semana? Mas ligaram-me para casa para cá vir, que já podia fazer isto! Andam a brincar comigo, andam a brincar comigo!”
Do lado de cá há rugidos de indignação e planos para tomar, de troncos nus, sapatos de salto alto e bengalas, a monofuncionalidade de assalto.
Os dormentes em serviço, do lado dos da forma, estão impávidos. Não acontece sequer o desenho de uma sobrancelha franzida.
(Sai aquele do lado dos da forma com mais outro cigarro atrás da orelha e o mesmo isqueiro na mão. Sempre passo de cágado.)
Oiço camisas a rasgarem-se e homens a baterem no peito como o Tarzan. As mulheres mais novas descalçam os saltos altos e as mais velhas preparam-se para arremessar as bengalas. A revolta vai começar.
A multidão abre a boca e grita, em tom grave, com gestos de Abril: SIMPLEX, SIMPLEX, SIMPLEX!
Uma lá ao fundo, no lado dos da forma, estica placidamente o pescoço e espreita com o olho direito por cima do monitor, para depois sussurrar: “Simplex não temos, esgotou”.
Os homens arrumam as camisas e os Tarzans, as mulheres mais novas põem-se de novo nos saltos altos e as mais velhas apoiam-se nas bengalas.
A multidão volta a arrumar-se na dormência da espera.
(Não volta a entrar aquele do lado dos da forma com menos outro cigarro e o mesmo isqueiro na mão. Faltavam três minutos para as cinco da tarde. Já não dava tempo de subir as escadas. Passo de cágado.)
Antes dos cartazes descolorados, colados nas paredes com fita-cola que já amareleceu, há filas de gente entorpecida, de pé, a sobrar do espaço de espera.
Depois das secretárias imponentes há todo um outro mundo.
O espaço do lado de lá é dos funcionários da forma, que partilham, deslocando-se em marcha fúnebre, postura, des-sorriso, feições e aquele desenho de rabo que é a forma de uma cadeira.
(Sai um do lado dos da forma com um cigarro atrás da orelha e um isqueiro na mão. Passo de cágado.)
- “Precisava de esclarecer uma dúvida”, arrisco, já a abanar os braços como quem, dentro de água, grita por socorro.
(Entra no lado dos da forma o do cigarro, que agora é o do isqueiro porque já acabou de fumar. Passo de cágado.)
- “Previsões de tempo de espera?!” E um ar de indignação superlativa, de quem não tem que responder a perguntas: “Não temos. É que aqui atendemos senhas D, E, F, G. Tire a sua senhazinha e espere, menina. Tem que esperar”.
(Sai o mesmo do lado dos da forma com outro cigarro atrás da orelha e o mesmo isqueiro na mão. Ainda passo de cágado.)
Os dormentes das filas, do lado de cá, vão desesperando. Bufam, de senha amarrotada na mão. Põem os olhos no ex-libris da sala cinzenta: ecrã enorme, topo de gama, a fazer dlim-dlão quando muda a vez para mostrar o estado da arte, todo-brilho-e-eficiências .gov.
(Entra de novo no lado dos da forma o do outro cigarro, que agora é outra vez o do isqueiro porque acabou outra vez de fumar. Ainda passo de cágado.)
Senha e meia e um grito.
- “Só para a semana? Mas ligaram-me para casa para cá vir, que já podia fazer isto! Andam a brincar comigo, andam a brincar comigo!”
Do lado de cá há rugidos de indignação e planos para tomar, de troncos nus, sapatos de salto alto e bengalas, a monofuncionalidade de assalto.
Os dormentes em serviço, do lado dos da forma, estão impávidos. Não acontece sequer o desenho de uma sobrancelha franzida.
(Sai aquele do lado dos da forma com mais outro cigarro atrás da orelha e o mesmo isqueiro na mão. Sempre passo de cágado.)
Oiço camisas a rasgarem-se e homens a baterem no peito como o Tarzan. As mulheres mais novas descalçam os saltos altos e as mais velhas preparam-se para arremessar as bengalas. A revolta vai começar.
A multidão abre a boca e grita, em tom grave, com gestos de Abril: SIMPLEX, SIMPLEX, SIMPLEX!
Uma lá ao fundo, no lado dos da forma, estica placidamente o pescoço e espreita com o olho direito por cima do monitor, para depois sussurrar: “Simplex não temos, esgotou”.
Os homens arrumam as camisas e os Tarzans, as mulheres mais novas põem-se de novo nos saltos altos e as mais velhas apoiam-se nas bengalas.
A multidão volta a arrumar-se na dormência da espera.
(Não volta a entrar aquele do lado dos da forma com menos outro cigarro e o mesmo isqueiro na mão. Faltavam três minutos para as cinco da tarde. Já não dava tempo de subir as escadas. Passo de cágado.)
2 comentários:
Bom texto!!! ***
E é isto, precisamente. É a descrição mais genial daquele escorrega-mas-não-cai desses sítios com gente murcha e senhas que vão, pelo menos, do A ao G.
Amei!
Beijinho grande :)
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