sábado, maio 02, 2009

Passo de cágado

Cheira a espera. O espaço é cinzento-mármore e tem linhas de inox nos corrimãos das escadas até ao varandim.

Antes dos cartazes descolorados, colados nas paredes com fita-cola que já amareleceu, há filas de gente entorpecida, de pé, a sobrar do espaço de espera.

Depois das secretárias imponentes há todo um outro mundo.


O espaço do lado de lá é dos funcionários da forma, que partilham, deslocando-se em marcha fúnebre, postura, des-sorriso, feições e aquele desenho de rabo que é a forma de uma cadeira.

(Sai um do lado dos da forma com um cigarro atrás da orelha e um isqueiro na mão. Passo de cágado.)

- “Precisava de esclarecer uma dúvida”, arrisco, já a abanar os braços como quem, dentro de água, grita por socorro.

(Entra no lado dos da forma o do cigarro, que agora é o do isqueiro porque já acabou de fumar. Passo de cágado.)

- “Previsões de tempo de espera?!” E um ar de indignação superlativa, de quem não tem que responder a perguntas: “Não temos. É que aqui atendemos senhas D, E, F, G. Tire a sua senhazinha e espere, menina. Tem que esperar”.

(Sai o mesmo do lado dos da forma com outro cigarro atrás da orelha e o mesmo isqueiro na mão. Ainda passo de cágado.)


Os dormentes das filas, do lado de cá, vão desesperando. Bufam, de senha amarrotada na mão.
Põem os olhos no ex-libris da sala cinzenta: ecrã enorme, topo de gama, a fazer dlim-dlão quando muda a vez para mostrar o estado da arte, todo-brilho-e-eficiências .gov.

(Entra de novo no lado dos da forma o do outro cigarro, que agora é outra vez o do isqueiro porque acabou outra vez de fumar. Ainda passo de cágado.)


Senha e meia e um grito.

- “Só para a semana? Mas ligaram-me para casa para cá vir, que já podia fazer isto! Andam a brincar comigo, andam a brincar comigo!”

Do lado de cá há rugidos de indignação e planos para tomar, de troncos nus, sapatos de salto alto e bengalas, a monofuncionalidade de assalto.

Os dormentes em serviço, do lado dos da forma, estão impávidos. Não acontece sequer o desenho de uma sobrancelha franzida.

(Sai aquele do lado dos da forma com mais outro cigarro atrás da orelha e o mesmo isqueiro na mão. Sempre passo de cágado.)

Oiço camisas a rasgarem-se e homens a baterem no peito como o Tarzan. As mulheres mais novas descalçam os saltos altos e as mais velhas preparam-se para arremessar as bengalas. A revolta vai começar.

A multidão abre a boca e grita, em tom grave, com gestos de Abril: SIMPLEX, SIMPLEX, SIMPLEX!

Uma lá ao fundo, no lado dos da forma, estica placidamente o pescoço e espreita com o olho direito por cima do monitor, para depois sussurrar: “Simplex não temos, esgotou”.

Os homens arrumam as camisas e os Tarzans, as mulheres mais novas põem-se de novo nos saltos altos e as mais velhas apoiam-se nas bengalas.

A multidão volta a arrumar-se na dormência da espera.


(Não volta a entrar aquele do lado dos da forma com menos outro cigarro e o mesmo isqueiro na mão. Faltavam três minutos para as cinco da tarde. Já não dava tempo de subir as escadas. Passo de cágado.)

2 comentários:

LiMpA_ViAs disse...

Bom texto!!! ***

Sofia disse...

E é isto, precisamente. É a descrição mais genial daquele escorrega-mas-não-cai desses sítios com gente murcha e senhas que vão, pelo menos, do A ao G.

Amei!

Beijinho grande :)