sexta-feira, maio 08, 2009

A mulher enorme

Esteve a bater natas para fazer o bolo que há-de ser o nosso lanche e o fim deste texto. Atrasou-se mas chegou, ainda a limpar as mãos molhadas à bata branca.

Filomena tem uma figura miúda: é magra e baixa. Tem mãos de avó. E tem as pernas arqueadas: não anda, dança.

O rosto é desenhado por traços fortes, carregados. Tem os olhos dento de uns óculos de massa redondos, de filósofa; sobrancelhas espessas e cabelo curto, com poucas madeixas brancas.

Filomena conta 83 anos e é voluntária há 14, todos os dias, nunca menos de oito horas por dia. Veio ocupar a cabeça porque o filho mais novo é assim. Porta-se mal. Tem aquilo das drogas que se diz com aquela palavra complicada que Filomena não arrisca.

“Ele é um menino intermitente desde que nasceu, prematuro. E antes disso já tinha sido uma gravidez de risco. Agora, já quase com 45 anos, não deixa de me preocupar por um dia que seja”.

Levou-o para a desgraça maior o 25 de Abril de 74, garante a mãe: “Vieram muitas coisas de fora. Era uma euforia, havia muito de tudo, muita gente nova, os miúdos agarraram-se a coisas que não conheciam. Ele também se deixou ir, começou a meter-se naquilo”.

Filomena não consegue deixar de se culpar. “Viemos do nordeste transmontano à procura de uma vida melhor. A minha inteligência não abrange esses mundos todos. E eu não sabia nada da vida. Não percebi o que se estava a passar e nunca consegui fazer nada”.

“Tive coragem de mandar prendê-lo”, conta. “Matou o meu marido de desgosto e levou-nos tudo. Aos outros nunca fez mal, mas para os pais tem sido um calvário, embora esteja a atravessar uma fase melhor”.

Nunca está doente porque não pode: “Não tenho como pagar os medicamentos, por isso nunca adoeço”.

Enquanto ajeita os seus óculos redondos, Filomena responde-me à pergunta sobre a influência que o urbanismo de um bairro social tem na vida dos que lá vivem: “Pergunta-me como é que o Governo pode acorrer a tanta gente que só grita para pedir sem se mexer para trabalhar? Eu não sei, mas não acho que tenha sido esperteza juntá-los todos”.

Depois das escadas está uma sala onde começa a entrar gente. No centro está uma mesa comprida, coberta com uma toalha de xadrez vermelho. Em cima, um bolo alto, barrado com as natas do primeiro parágrafo.

Filomena olha cheia de orgulho para os que namoram o bolo e desafia-me: Uma jornalista é muita coisa, menina, mas não acredito que saiam bolos tão bons das suas mãos como saem das minhas, mesmo com esta idade. Uma fatia?”

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