sexta-feira, março 13, 2009

Vergonha dos olhos dos outros

«Paga-me um café e conto-te a minha vida. (...) Pago-te um café se me contares o teu amor.»
José Tolentino Mendonça

- “Estou aqui porque ainda não consegui dinheiro suficiente para a passagem. Vou para Almada.”

- “Se quiser companhia podemos ir as duas”.

- “Oh, filha, mas eu ando muito devagar!”

- “Não faz mal; não tenho pressa nenhuma”.


Conceição começou na minha vida depois de uns passos atrás. Antes era só uma figura do caminho. Do meu e do do outros. Porque quem pede é o único a esperar nos corredores onde toda a gente passa a correr.

Tem quase 70 anos, uma cara sardenta e uns lindos olhos azuis. Não tem família, vive de esmolas. Hoje parei e paguei-lhe uma viagem para saber a sua história.

Encontrei-a sentada nas escadas que levam aos comboios, no Cais do Sodré. Senta-se sempre do mesmo lado, com a cabeça encostada ao corrimão: “As pessoas estão acostumadas a ver-me neste sítio”, diz.

Seguimos. Conceição anda quase sempre sozinha. E à volta dela andam olhos pesados e indiscretos, mais trejeitos de boca e sobrolhos que indagam.

Nasceu na Amadora e mudou-se depois com os pais para o Algarve, onde viveu durante vinte anos.

- “Assim que os meus pais morreram vim para Lisboa. Gostava tanto do Algarve que nem o sotaque pegou!”, brinca.

Foi criada de servir desde muito cedo; depois trabalhou a dias. Sempre sem descontar.

- “As assistentes sociais desconfiam de mim por não ter feito descontos. Dizem que não podem fazer nada. Que mesmo quem descontou ganha muito pouco; eu, não tendo descontado, bem se vê que não mereço nada”.

Conceição não se lamenta nem fala com raiva. Não jantou, mas “está bem”.

Consegue ler “mas é uma coisa assim muito pouca”, embora a arrumação que dá às palavras não a denuncie. “Sempre que preciso de um papel para alguma coisa tenho que pedir ajuda. Mas há sempre alguém que me ajuda”, garante.

Tem uma aliança de ouro no anelar da mão direita, de linhas largas e redondas, só para afastar os homens. Decidiu ser solteira.Não ligava muito a isso. Preferia passeios e brincadeiras. E sobretudo gostava de não ter que dar satisfações a ninguém”, conta.

- “Às vezes pergunto-me se não teria sido melhor casar e agora ter uma companhia, uma família. Mas depois penso que, com jeito, ainda estava era a ter que trabalhar para um marido mau e calão. Estou muito bem sozinha!” E ri-se muito enquanto conta estórias-de-antes-daquilo-nas-pernas.

Conceição anda com muita dificuldade. Tem as pernas enroladas em ligaduras, por causa das úlceras, que não passam, e um peso imenso, do seu corpo, apoiado nisso tudo. Tem o cabelo muito sujo, com duas madeixas presas atrás das orelhas, com dois ganchos de cada lado. Está vestida de malha verde e de algodão castanho. Na mão traz um cesto de verga e uma malinha preta, tudo muito encardido.

O barco é lúgubre. O semblante dos que aqui vão é dessa cor. Faz de conta que a noite não parece de verão e que as luzes da beira das cidades não puxam os sorrisos. Os lugares ao lado do seu ficam quase sempre vazios. E à volta ficam mais olhos pesados e indiscretos, mais trejeitos de boca e sobrolhos que indagam de novo.

Ainda fala na moeda antiga e troca tudo tal e qual a minha avó. Precisa de 30 euros por mês para comprar medicamentos. Não consegue comprá-los sempre.

- “Quando não consigo o dinheiro não tomo os remédios. Perco a força nas pernas, muitas vezes fico de cama; quando tento vir à rua dou muitas quedas”.

Vive em casa de uma senhora, que há-de ter outro nome mas que nesta estória será só senhora, por ter sido assim que Conceição lhe chamou.

- “Dá-me um tecto, e isso é muito bom. Não me dá comida, porque encomenda a um restaurante e ao fim do mês passa um cheque e não conta comigo, mas não tem importância. Já me ajuda muito. E depois, tenho muita gente que gosta de mim, que me ajuda. Ando como os pombos, aos saltinhos. Quem anda nesta vida tem que andar assim. Peço no Marquês, no Rossio e ali, onde me encontrou”.

Almada chegou-se ao barco e a Conceição chegou-se uma senhora alta, muito branca, com um lenço a tapar o cabelo.

- “É uma amiga. É outra menina que me ajuda”. Conversaram, animadas, felizes.

E de novo olhos pesados e indiscretos, mais trejeitos de boca e sobrolhos a indagarem. Despedi-me e voltei costas, a soluçar. Precisava de tirar dos meus olhos a vergonha que senti dos olhos dos outros.

8 comentários:

Anónimo disse...

Ai princesa, no fim também me veio a lágrima...há vidas por aí que nem imaginamos! Mais uma excelente história ;) Beijinho grande*

Geraldes Lino disse...

Joana Fernandes
O seu talento literário está marcado em cada frase, e o seu humanismo - alavanca útil para quem se dedica a escrever - vai permitir-lhe continuar a pincelar realisticamente a vida que observa.
Os escritores começam assim, por exemplo.

Geraldes Lino disse...

Esqueci-me de dizer que sou o Geraldes Lino, do blogue http://divulgandobd.blogspot.com

Anónimo disse...

Excelente!

P.S.: desculpa mas deixaste-me sem palavras de momento

Ana S.

Anónimo disse...

Fantástico... Fiquei com a lágrima no canto do olho...

Beijinhos Joana,

Luís Rocha

Anónimo disse...

Querida Joana,

As tuas estórias e os teus escritos deixam-me comovida. É tão bom saber que há quem se interesse, que há quem demore o olhar nos que apenas recebem olhares pesados...Um beijinho e saudades da tua ex-professora e para sempre amiga.

Cristina Nico

Anónimo disse...

Se a Joana algum dia escrever um livro, vou comprar para ficar com os olhos bonitos.

Simão

Anónimo disse...

"Os naufrágios são belos..."

;)