sábado, março 28, 2009

Os cães, a garganta e os sapos


"Nós, pobres, devíamos alargar a garganta, não para falar, mas para melhor engolir sapos".

Zedmundo. Mia Couto in O Fio das Missangas

Aqui não chega correio. Não há água. Não há luz. Há lixo no chão e barracas a enquadrá-lo. Cheira muito mal. Há hortas secas e miúdos sujos e descalços, a levantarem pó do chão, e os pais deles, de sorriso já fugido, como o seu emprego.

Estamos em 2009, na Costa da Caparica, em Almada, Portugal, Europa.

Há sete anos que a água só chega aos alguidares do bairro clandestino das Terras da Costa depois de quase dois quilómetros à cabeça, desde o centro da vila. Vivem aqui 300 pessoas, quase todas cabo-verdianas.

As cabeças viram-se porque alguém veio para ouvir. Ao fundo, de passagem, uma mulher magra, vestida de preto, geme: “Vivemos como cães! Vivemos como cães! É assim que vivemos aqui. Somos cães para eles!”

Angélica diz-me o mesmo. Tem 71 anos e os olhos nublados de cataratas. Tem o cabelo amarrotado para o lado onde deitou a cabeça. É à sua casa, que comprou “com umas coisas legalizadas”, que vêm ter todas as cartas que chegam ao bairro, embora ela não saiba ler.

O bloco branco está envolto num novelo de fios. É daqui que alguns vizinhos levam luz. É daqui que roubam a televisão por cabo: “E roubam tanto que já nem consigo ver televisão, de tão fraco que está o sinal”.

- “Já só quero ir, quero ir-me embora. Não vou voltar a arranjar esta casa. Está tudo a cair! Se não tapar a brecha da porta acordo com ratos ou cobras em casa. Isto é vida? Já me prometeram realojamento vezes sem conta, nem sei dizer”.

A casa não tem água nem esgotos. Angélica tem “só meio coração, ou o coração a funcionar a meio gás”, foi operada há pouco tempo.

- “Pago aos miúdos para me trazerem água. Não posso fazer esforços. Também é uma maneira que tenho de os ajudar”, encolhe os ombros.

O bairro pôs-se aqui, virado para o mar mas sem ver as ondas, há 30 anos. Ouve-se crioulo. Há-de haver cachupa, se-a-menina-desculpe-se-a-senhora-quiser. Há lenços nas cabeças das mulheres e vergonha a sobrar dos corpos de todos.

- “Temos vergonha. E é uma vergonha! Já imaginou, um estudante a ir buscar água à praça? Nelson tem 20 anos, está a tirar um curso tecnológico de reparação e instalação de computadores. Tem um sorriso bonito, franco. Chamam-lhe doutor. É irónico e mordaz.

- “Tirando isso corre tudo bem. Quase não faz diferença que tarefas simples como tomar banho ou lavar a loiça dêem três vezes mais trabalho do que o normal. E, claro, não tem importância nenhuma que tenha recebido um computador que não posso usar, porque não tenho luz.

Durval Carvalho tem 34 e as bocas dos moradores do bairro postas na sua.

- "Não estamos a exigir água canalizada em casa, estamos apenas a pedir algum respeito. Não me parece que seja assim tão difícil".

Depois de a boca de incêndio onde iam buscar água ter sido cortada, houve quem tentasse abastecer-se no cemitério, que fica mais perto do que o chafariz do centro da vila.

- “Fomos expulsos, como cães. Como cães! Expulsaram-nos com medo de que os mortos morram de sede!"

1 comentário:

Florbela Godinho disse...

É incrível como todos os dias o inacreditávbel se torna realidade mesmo debaixo dos nossos olhos.