quinta-feira, março 05, 2009

De olhos bem abertos

Não interessa o seu nome. Interessam uns olhos grandes, muito verdes, e umas pestanas enormes. Interessa que tinha os olhos verdes molhados e a cara com as marcas de parte da estória que se segue.

Ainda não era um homem: tinha 17 anos e soluços de menino. Fungava e soluçava, cheio de desamparo. E intrigava-me.

Vi-o despedir-se de um homem, com quem chegou de boleia. Vi-o depois, antes do autocarro, fumar um cigarro trémulo, encostado à paragem. Vi-lhe as mãos de dedos gordos, cheias de cicatrizes. Mas nunca o vi parar de chorar antes das palavras.

Vejo-o agora sentado à frente da chuva que bate no vidro, exactamente onde estava no início desta estória.

- “A minha mãe morreu”, disse. “Ligaram-me agora. Já se esperava, ela estava no hospital há algum tempo. Estava muito mal. Mas dói sempre”.

Sentada ao seu lado, fiz o gesto possível porque não sei o que se diz.

- “Ela não me criou. Portou-se mal. Deixou-me com os meus avós. Mas custa sempre”, continuou, já sem lágrimas os olhos verdes, ainda húmidos, e entre soluços mais espaçados.

As marcas que tinha na cara eram lembranças de brincadeiras com ciganos, em miúdo, pelas ruas de um bairro pobre, no Porto, onde viveu sempre. Diz que os garotos brincavam com navalhas pequenas, que as grandes eram perigosas.

O cabelo loiro, liso, era da mãe. O resto das feições, menos as cicatrizes, eram do pai, que não conheceu. Os passos trocados na vida eram herança dos dois.

- “A minha mãe dizia-me muitas vezes que eu era ruim como o meu pai. Que tinha aquilo da maldade no corpo. E eu acho que tinha. O problema é que também tinha a maldade dela. Juntei a dos dois”.

Ele, não sabe o que fazia. Ela vendia droga e perdeu-se, como todos, quando começou a consumir. Antes disso, a mãe levava-o para as viagens de negócios. A droga mostrou-lhe o mundo.

- “Fiz muitas asneiras durante muito tempo, depois de a minha mãe me deixar. Assaltei casas, roubei carros, que depois despachei para Espanha ou vendi às peças. Nunca tirei a carta e conduzi centenas de carros. Nunca fui apanhado mas fiz muitas asneiras. Cheguei a fazer milhares de euros numa noite. Gastei tudo com os amigos e em droga: fumava até ficar com a cabeça oca”.

A mãe deixou-o entregue aos avós quando deixou de conseguir dar conta do negócio, para se deixar consumir sozinha.

- “Respeitei sempre os meus avós. Garanti que não faltava nada em casa. Nunca faltou. A minha avó é a minha mãe e o meu avô era o meu pai. Morreu há dois meses. Era a pessoa que eu mais admirava neste mundo. Ensinou-me a andar, a falar, a ser. Foi por ele que decidi trocar de caminho. Melhor, foi por ele que consegui. Por isso é que é mais difícil de engolir: agora que comecei a fazer as coisas certas levo os castigos todos”.

Fala-me das viagens, das leituras, do cinema, da música e das namoradas.

Há quase um ano que está num centro de recuperação para jovens toxicodependentes. Já não bebe álcool nem fuma drogas. Está a tentar deixar os cigarros. Voltou à escola e deixou de ter raiva do mundo. Sorri todos os dias.

No fim da minha viagem e a meio da dele, os olhos verdes estão secos e as pestanas continuam enormes. Descemos: eu para casa, ele para o cigarro, e ambos para o adeus. Sorri e abraça-me.

- “Não precisava de te contar nada disto. Mas achei que devia. Tens ar de quem andou na escola, ar de quem acha que sabe. Eu andei perdido pela vida, é verdade. Mas queria que soubesses que andei de olhos bem abertos”.

6 comentários:

Sofia disse...

onde e q tu desencantas estas historias?!Parece sempre que os consigo ver.

Unknown disse...

Olha que rica ideia esta da espécie de newsletter. Agradeço que daqui por diante tenhas o cuidado de o fazer sempre! Como fiel leitora de todas as tuas histórias, acho que mereço este bónus! ;)

Alexandre Soares disse...

Joaninha, brilhante, como sempre. Gosto mais destas histórias do que de favas com chouriço.
Beijos

Anónimo disse...

adorei a forma como escreveste, como de costume, adorei a história que veio ao teu encontro, escutaste e nos contaste. Obrigada por partilhares estas histórias :) também me parecia que ele tinha os olhos abertos sobre o que estava a acontecer.

beijo e continua :)

Ana Santos

Sofia disse...

Cada texto que escreves é sempre melhor do que o que tinhas escrito antes. Isto, minha querida... São tudo menos parvoíces!

Kermit disse...

Tens uma escrita maravilhosa!
Parabéns M.Azulinha! Dá profundo gosto de ler!