sexta-feira, outubro 23, 2009

O bairro que se deita no mar

Este bairro veio plantar-se à beira do mar que banha a Trafaria nos anos 60. Primeiro ergueram-se casas de pescadores, depois, casas de quem vinha procurar uma vida melhor. Todas construídas com o suor de cada família, e sem papeladas. E nisto houve um estender de novelo, comprido e enleado.

O bairro do Segundo Torrão é um retalho de casas amalgamadas em ruas exíguas e labirínticas, repletas de lixo e de pó, onde vivem mais de 300 famílias sem água, sem luz e sem esgotos.


Neste bairro que se plantou à beira do mar que banha a Trafaria foi-se plantando também a droga, o álcool, o desemprego, a criminalidade, as gravidezes de adolescentes, o abuso de menores e a violência doméstica.

Todo este terreno é propriedade privada. Os moradores ouviram já, por diversas vezes, falar do realojamento.

Gisela, pouco mais de 40 anos, mulher de ombros largos, roupa amarrotada e cabelo desgrenhado, branco na raiz, maço de tabaco sempre na mão e pés empoeirados dentro de uns chinelos largos, é tesoureira da associação de moradores.

“Tratam-nos como se fossemos invisíveis”, diz, numa entoação firme, nascida ali, onde vive há duas décadas.

“Não somos merecedores de estar dois e três dias sem luz, de passarmos frio no inverno, de termos que fazer puxadas do chafariz para termos água, de não termos sistema de esgotos, apenas fossas – que muitas vezes rebentam e ficam a céu aberto. Ninguém é. É uma questão de direitos humanos”.

“As estradas fazem poças enormes no inverno, o bairro é labiríntico e a acessibilidade limitadíssima. Há muitas ruas em que não passa um carro de bombeiros. Um incêndio será – e já foi algumas vezes – um filme de terror”, descreve.

Para esta mulher, que é mãe, e para todos os olhos que passem nestas ruas, cruzando-se com dezenas de garotos numa correria desocupada, “não se pode arriscar não manter estas crianças com alguma coisa para fazer”.

Neste sentido, a voz endurece quando fala da autarquia: “Tem destruído mais do que tem construído. Tentámos fazer um pavilhão para reunir as crianças, para instalarmos uns computadores, mas a Câmara não autorizou”.

“É isto com tudo. São derrotistas. Somos invisíveis, invisíveis”, lamenta.

Gisela sabe que terão que ir embora um dia mas não quer que ninguém se esqueça de que todos os dias antes do realojamento são dias de vida dos que aqui estão.

A autarquia garante que “conhece há muito tempo e muito bem os bairros da Trafaria” e considera que “não é razoável que a Câmara faça mais do que aquilo que tem feito”.

“Não existem no Concelho de Almada cidadãos invisíveis ou de segunda categoria”, garante, sublinhando que “há diálogo” e assegurando que “todos os moradores vão ser realojados em conformidade com os tempos em que se vive”.

Num sofá torpe e esburacado, virado para o mar que banha a Trafaria em 2009, está um cão pequeno e tão peludo que é difícil ver-lhe os olhos, tristes e parados. Ali aninhado, debaixo de um sol que lhe dá sono, tem sorte de não conseguir pensar que é estranho que ainda haja gente a ter que viver assim.

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