segunda-feira, junho 01, 2009

As bengalas de Abril

O domingo de chuva indecisa não começou há muito tempo. É cedo. Muito mais cedo do que isso porque é domingo e porque ora está de chuva, ora está quase a estar de chuva.

Não obstante, eles chegam determinados, em filas ininterruptas, fora as intermitências próprias da locomoção naquelas idades.

É dia de congresso e vêm – de muletas e bagagens – de todo o país para arrumar a sua luta: “o Movimento Unitário de Reformados, Pensionistas e Idosos (MURPI) quer ser reconhecido pelo poder político como a voz de todos os reformados do país”, explica-me Casimiro Menezes, presidente do Movimento.

Ao longo das inúmeras filas intermitentes, impecavelmente vestidas de domingo e pontuadas com boinas de fazenda que descaem para a esquerda, – sempre para a esquerda – ouvem-se queixas dos joelhos, das costas e do tempo, que traz as dores nos ossos.

Dentro do pavilhão já meio cheio, um coro alentejano apruma as fardas e prepara-se para ensaiar. Eu não fico nesta estória o tempo suficiente para poder dizer se o ensaio valeu a pena.

Ao longo dos blocos de cadeiras virados para o palanque de onde vão sair as palavras que hão-de arrumar a luta para que aqui se veio hoje, está uma senhora cujo cartão ao peito identifica como voluntária.

“Preencham as fichas de inscrição no almoço. Quem não vê bem pede ajuda ao colega do lado”, diz ela, com pequenos passos nervosos de saltos altos. “À direita os andarilhos, à esquerda as bengalas. As muletas ficam arrumadas aqui ao canto para não atrapalharem a passagem, depois peçam-nas a quem estiver mais perto de vocês”.

Na ponta da segunda fila está Felicidade Barreiros, 71 anos, cabelos brancos e armados em traços largos com laca. Tem os lábios pintados de vermelho.

“Tenho Abril na boca”, conta-me. “Luto pela liberdade desde antes do 25 de Abril. Nunca me filiei no partido porque o meu marido se filiou, e não quisemos arriscar ser os dois presos por causa das meninas”.

Felicidade vestiu milhões de bonecas na fábrica onde trabalhou, na Marinha Grande, onde ainda vive, e vestiu, como a maioria dos que vieram aqui hoje continuar a luta, o país de liberdade.

“Erguemos esta nação, demos tudo. Acho que nos devem mais carinho do que aquele que nos dão”, desabafa. “Demos tanto das nossas vidas... Diz na Constituição que ninguém deve viver com menos do que o salário mínimo. Nós somos gente ou não somos?”.

“Sinto que este país não é o Abril com que sonhámos. Este Abril está coxo, precisa de bengalas, como nós. É uma boneca por vestir”.

Felicidade diz que no Abril com que sonhou as suas netas, ambas licenciadas, não estariam desempregadas. No Abril com que sonhou não teria que escolher entre um medicamento e a conta da luz. No Abril com que sonhou a velhice seria poesia, como prometeu o sol que veio depois da luta.

De acordo com o presidente do MURPI, há 1,2 milhões de pensionistas que sobrevivem no limiar da pobreza e a abrangência do Complemento Solidário para Idosos é parca: “É dado apenas a 200 mil pensionistas quando existem mais de 1.560.000 receber menos de 330 euros por mês”.

À volta, a sala continua, intermitente e vagarosa, a compor-se. O coro afina-se. O palanque está cheio, a ordem na luta vai começar a ser desenhada.

Um senhor alto, moreno, de bigode grisalho, faz-me sinal como quem tem um segredo para contar.

“Não é fácil organizar coisas com idosos, menina. Eles demoram muito a fazer uma fila, depois demoram a encontrar os lugares, demoram muito tempo a sentar-se e depois vai-se a ver e nem ouvem o que se diz... Desculpe o atraso, sim? No próximo congresso havemos de combinar ainda mais cedo”.

Quando chegarem todos ao pavilhão serão 400, a ordem na luta já terá sido posta, o coro estará a preparar-se para cantar e as inscrições para o almoço já estarão na posse da voluntária de saltos altos.

Saí antes. Nas escadas depois do pavilhão e ainda antes da rua vinham duas senhoras idosas, imensas de tão redondas e zonzas de tão perdidas.

Estão um bocadinho atrasadas. O pavilhão é depois destas escadas, à direita”, arrisquei.

“Já serviram os croquetes?”, pergunta a maior, num tom conforme às suas formas.

“Não vi croquetes em lado nenhum lá em cima”, respondi, envergonhada.

“Se não viu croquetes em lado nenhum quer dizer que ainda chegámos foi cedo demais!”

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